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29 de dezembro de 2020
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10:47

Transições, esperança, travessia (Caetano Veloso e Paul B. Preciado)

Por
Sul 21
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Transições, esperança, travessia  (Caetano Veloso e Paul B. Preciado)
Transições, esperança, travessia (Caetano Veloso e Paul B. Preciado)
Caetano Veloso e Paul B. Preciado (Reprodução/Twitter)

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

2020 foi um ano inclassificável. As palavras são insuficientes para nomeá-lo; elas não dão conta desse real que nos invadiu, expondo de maneira radical as impotências e as fragilidades humanas. Ao mesmo tempo em que o ar parece ter ficado extremamente tóxico, tornou-se o bem mais precioso. Quantas vezes ouvimos as palavras contágio, morte, vírus, luto, crise, saúde, respiradores? Parecia-me impossível deixar de topar sempre com as mesmas letras disparadoras de angústias, até o momento em que tive o privilégio de assistir à mesa 08, intitulada “Transições”, compondo o ciclo de atividades da Flip – Feira Literária Internacional de Paraty –, com a iluminada participação de Paul B. Preciado e Caetano Veloso, mediada por Angel Gurria-Quintana.

Além da admiração pelo trabalho e pela responsabilidade social das personalidades presentes, o tema do debate ajudou-me a pensar em mudanças, viradas, transposições, especialmente quando precisamos fazer a travessia dos medos, das indiferenças e da falta de esperança. A forma de apresentação dos convidados dava o tom da potência do encontro: “os nossos convidados, cada um deles no seu jeito, tem feito questão de ultrapassar fronteiras, derrubar convenções sociais, empurrar os limites da identidade, seja através da música, através da escrita ou até através do próprio corpo. Eles são defensores da mudança, apologistas da diferença, filósofos da transformação, da transição, da migração, da redefinição”.

Por diferentes caminhos, eles abordaram desde as vulnerabilidades do corpo frente ao Estado até a violência da ditadura masculina e sua imposição de normativas sexuais. A leveza do debate transpôs barreiras que insistem em se fixar tanto na sustentação de um patriarcalismo decadente quanto nos diversos mecanismos de produção de alienação de subjetividades. Caetano, por ocasião de sua prisão pelos militares, foi classificado como “subversivo” e “desvirilizante” pelos homens de farda. Por sua vez, Paul B. Preciado [1] – filósofo, ativista, artista e um dos principais pensadores contemporâneos das novas políticas do corpo, do gênero e das sexualidades – considera-se como um dissidente do sistema sexo-gênero.

Ao constatar o crescimento da retórica de extrema direita no mundo, Paul percebeu a necessidade de não ficar restrito ao âmbito universitário e ser um ativista nos meios de comunicação como estratégia para fazer frente aos discursos fascistas. Fez de sua escrita uma verdadeira tecnologia de produção de subjetividade e de defesa das liberdades, dando voz às pessoas trans, transgêneros, travestis, transexuais e a todos que entram em dissonância com uma linguagem capaz de identificá-los normativamente.

O filósofo faz pensar na urgência de ultrapassar a lógica do binarismo sexual responsável por segregar múltiplas formas de expressividade. Apesar de reconhecer o quanto a história da modernidade colonial é também a de um patriarcado arcaico que tende a eleger alguns corpos como soberanos e outros como subalternos, sua fala deixa evidente o quanto só é possível uma verdadeira democracia se enfrentarmos as relações de poder e a questão do racismo, pois o monopólio da violência tem protagonista: o homem branco.

Caetano entra na conversa provocado a falar sobre os recentes lançamentos do documentário “Narciso em férias”[2], pela Globoplay, e do livro homônimo, pela Companhia das Letras. Com sua sensibilidade ímpar e a sua experiência de análise da qual faz questão de lembrar, vê-se um belo testemunho da importância de mantermos certa dimensão narcísica ao nosso lado como tentativa de preservação de si; não deixando de observar como essa palavra é sempre usada de forma pejorativa.

Ao recordar do sofrimento vivido por ocasião de sua prisão nos anos de chumbo, Caetano fala ter vivido uma espécie de desligamento narcísico. Arrancado de sua vida de forma brutal, ele foi jogado numa solitária sem qualquer tipo de explicação, o que o impossibilitou, inclusive, de ver a própria imagem no espelho. O espaço masculino da prisão militar teria causado “um apagão no narciso”, a ponto de sua atração sexual por homens transformar-se em rejeição à figura masculina.

Caetano e Paul não se limitaram em fazer críticas à figura do macho opressor, violento e impotente no exercício de seu suposto poder. Mais do que isso: apontaram um colapso epistêmico, haja vista o desmoronamento da epistemologia patriarcal e colonial vigente. Como bem disse Paul: “a questão agora é se podemos inventar uma epistemologia que pode reconhecer a radical multiplicidade da vida”. Ou seja, urge sair do binarismo normativo para abrir espaço para múltiplas direções, dando voz aos corpos que ameaçam à condição binária do sistema. Caetano, por sua vez, convoca-nos a tomar posição e assumir a responsabilidade de criar novas formas de ser e habitar o mundo.

Curioso que, ao falarem das ruínas, dos escombros, do colapso, ambos se reconhecem otimistas. O filósofo se diz digno de um “otimismo patológico”, inclusive nos momentos dominados pelo medo, enquanto o músico se vê como “otimista programático”. Caetano chega a deixar uma dica de leitura para o seu interlocutor, lembrando da última palavra de Grande Sertão: Veredas – “O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia”.

Para quem ainda não comprou o presente de Natal, essa pérola de João Guimarães Rosa pode ser uma travessia para 2021.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Instituto APPOA, Doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS, autor do livro Perversões: o desejo do analista em questão. Curitiba: Editora Appris, 2019.

[1] São muitos títulos publicados pelo autor; dentre os mais recentes, destaca-se a originalidade da coletânea de ensaios escritos entre 2010 e 2018, “Um apartamento em Urano – crônicas da travessia”, publicado pela Zahar (2020). Nesse livro, ao mesmo tempo em que ele analisa as mutações políticas da sociedade, lê-se um testemunho da vivência/experiência de sua transição para o gênero masculino.

[2] O livro e o documentário abordam os dois meses que o cantor ficou como preso político, após a decretação do AI-5 pela ditadura militar. Alguns elementos dessa triste experiência já tinham sido relatados na autobiografia “Verdade tropical”, sendo o livro, na verdade, um capítulo dessa obra.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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