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1 de dezembro de 2020
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10:08

De quem é a culpa ?

Por
Sul 21
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Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil

Marcia H de M Ribeiro (*)

O que escrevo ouvi, e verte aqui de minha memória. Uma mulher e seu marido violento viviam numa casa à beira de um rio. Na outra margem havia um vilarejo. Regularmente ela fazia a travessia com um barqueiro para estar com seu amante. Também havia uma ponte não muito distante dali, que ela evitava pelo temor de encontrar um assaltante, conhecido na região por atacar os transeuntes à noite. Um dia ela tardou-se. No cais o barqueiro encerrava seu turno de trabalho e se recusou transportá-la. Retornou à casa do amante, mas ele se negou acompanhá-la alegando cansaço. Chegou a considerar seu convite para passarem a noite juntos, mas lembrou-se do marido violento e escolheu retornar pela ponte aonde logo depois foi morta pelo assaltante.

Simone de Beauvoir, a quem é atribuída a autoria dessa alegoria, teria perguntado: de quem é a culpa? Surpreendentes, ou nem tanto, teriam sido as respostas. No topo da lista figurava a mulher, adúltera, que “buscou” o nefasto destino. Depois, do barqueiro intransigente com o horário. Do amante egoísta cansado. Do marido violento que a empurrou para os braços do amante.

Ninguém, ninguém teria apontado a culpa do assassino, autor do ato.

Construir narrativas para mitigar responsabilidades, mesmo quando o ato criminoso e a autoria estão amplamente comprovados, não é incomum no âmbito jurídico. Tampouco na vida ordinária. Dizemos, aconteceu isso, mas… O que se diz depois do mas correspondendo ao nosso esforço para dar sentido aos acontecimentos, ainda mais quando eles são extraordinários.

Recordei da alegoria ao ouvir recentemente, por sugestão de dois amigos, O crime da praia dos ossos. A minissérie em oito capítulos, da Rádio Novelo, é idealizada e apresentada pela jornalista Branca Vianna, a partir de pesquisa de Flora Thomson-DeVeaux em extenso e rico material documental e testemunhal. A minissérie reconstitui os contextos de época e de vida dos envolvidos, do julgamento de Ângela Diniz, e seu assassinato por Doca Street em 1976. Sim, não há equívoco na frase, do julgamento de Ângela Diniz, morta com quatro tiros pelo então namorado.

Explico. Durante as audiências, a defesa do réu atribuiu culpa à vítima pela sua morte e submeteu sua vida – alguém que não podia mais tomar a palavra – a implacável julgamento moral, ao destacar imagens e episódios aptos a construir uma narrativa prenhe de desqualificativos. Estratégia deliberada para fazer surgir as figuras do criminoso-vítima e a da vítima-matável, acompanhadas da interpretação de que a motivação para o crime era exterior ao sujeito que empunhou a arma. A defesa apelou sem pudor à retórica denegatória: ele matou, mas, a culpa não é dele, ou, o que conduz ao mesmo resultado lógico, a culpa é dela. E também à retórica cínica ao sustentar que Ângela “cometeu suicídio pelas mãos de outrem.” Aposta desmedida para tirar o réu do centro da cena, comover o júri e chegar à porta da absolvição. Colou naquele primeiro julgamento, não no segundo em 1981, numa clara demonstração que a moralidade de uma época está apta a afetar juízos e julgamentos.

Sobre essa temática, vale a leitura do livro O inconsciente jurídico – julgamentos e traumas no século XX, de Shoshana Felman em que ela revisita, entre outros, o julgamento de O. J. Simpson, acusado de matar a ex-mulher.

Desqualificar a imagem e deslegitimar a palavra da vítima também comparecem em julgamentos de crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes. Exatamente por isso há uma tendência mundial para retirá-las das salas de audiências, colhendo seus testemunhos de outras formas.

O leitor poderia dizer que interpretar o comportamento de uma mulher ou de uma adolescente como justificativa, ou causa, do ato violento praticado pelo autor do crime é estratégia defensiva obsoleta, do século passado. Também poderia argumentar que as respostas dadas à alegoria proposta por Simone de Beauvoir são anacrônicas. Afirmaria talvez que, se acontecessem hoje, os dois casos produziriam respostas e estratégias de defesa diferentes. A experiência cotidiana tem demonstrado que a moralidade do passado ainda nos espreita, aguardando nossa distração para sequestrar a palavra e se instalar bem no centro da cena.

(*) Psicanalista, Membro da APPOA e do Instituto APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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