Colunas>Coluna APPOA
|
15 de dezembro de 2020
|
10:49

Como desaparecer completamente

Por
Sul 21
[email protected]

Luciano Mattuella (*)

No ápice da turnê do álbum Ok Computer, a banda inglesa Radiohead vivia uma insanidade de shows e festivais. Thom Yorke – o vocalista do grupo – estava completamente exausto, sem saber como seguir adiante com a maratona de apresentações que ainda o esperava. Atrás do conselho de alguém mais experiente, Thom telefonou para Michael Stipe, líder do tradicional R.E.M. Stipe parecia não ter muitas palavras de encorajamento, mas compartilhou com o amigo a sua forma de lidar com situações como essas: “Baixe as cortinas e fique repetindo para si mesmo: eu não estou aqui, isto não está acontecendo”. Este episódio foi a inspiração para Thom Yorke compor a letra de How to disappear completely, a quarta faixa do álbum Kid A, lançado no ano 2000.

“O Fim”, sexto e último livro da série Minha Luta, escrita por Karl Ove Knausgard. (Reprodução)

Lembrei dessa situação enquanto lia o recém-lançado “O Fim”, sexto e último livro da série Minha Luta, escrita por Karl Ove Knausgard. O livro é um calhamaço de mais de mil páginas, justamente o que os fãs do escritor, como eu, esperavam: um romance denso que entrelaça a vida cotidiana de Knausgard com reflexões sobre a vida, a morte, a literatura, o processo criativo, o valor das amizades… Uma ou duas páginas são suficientes para o leitor ir da preparação de um simples jantar em família a elocubrações sobre a moralidade na produção literária de Peter Handke. Knausgard é um escritor que teria tudo para ser absolutamente cansativo e maçante, mas a sua escrita fluida e sua intelectualidade modesta têm algo que prende o leitor como se estivesse conversando com um velho amigo que não vemos há algum tempo.

Ali pela altura da página 200, Knausgard escreve algo que me chamou a atenção – e este é o ponto de encontro com o episódio que eu comentava entre Thom Yorke e Michael Stipe: “Para um leitor (…) não existe nenhuma exigência quanto à independência ou individualidade, pelo contrário, todo o sistema literário baseia-se na premissa de que o leitor deve submeter-se à obra e desaparecer nela”. Knausgard propõe a leitura como uma forma de desaparecimento, o leitor de tal modo tomado pela obra que perde sua individualidade e independência. Um leitor, por assim dizer, que se transforma na própria obra.

Há realmente algo de mágico na sensação de perder-se na leitura de um romance e perceber que se passaram duas, três horas sem qualquer esforço. A leitura tem essa capacidade de abrir uma temporalidade singular em que, por algum tempo, habitamos um outro mundo, uma outra vida, somos outros – em que desaparecemos por um breve momento.

Neste tempos em que tudo parece tão difícil, em que estamos soterrados sob um passado que nos parece aos poucos menos familiar – como era mesmo encontrar os amigos num bar? – e que nos vemos frente a um futuro incerto – quando poderemos novamente viajar? -, acredito que cada um de nós temos tentado encontrar formas de desaparecer completamente, nem que seja por poucos minutos. Para alguns, isso tem sido possível pelo uso de bebidas alcoólicas; para outros, a música faz essa função, ou ainda as reuniões virtuais pelo Zoom. O mundo ao qual estávamos acostumados, no qual estávamos desaparecidos dentro de nossas pequenas rotinas já não está mais aí, pelo menos por enquanto. Coisas banais como acordar, tomar café, escovar os dentes, sair para o trabalho, encontrar um conhecido à noite e voltar para casa já não são tão próximas. Subitamente, nos percebemos visíveis a nós mesmos, precisando reinventar nossos pequenos hábitos e nos acostumar a transitar pelo imprevisível. Ficou muito difícil desaparecer completamente. Ficar em casa, ironicamente, tornou-se cansativo. Para muitos de nós, o mundo se tornou retangular e delimitado, como esta tela que tenho à minha frente agora.

Assim como Thom Yorke, estamos todos exaustos, sabendo que provavelmente teremos um caminho longo pela frente. Por sorte, as notícias mais recentes têm sido um pouco mais tranquilizadoras: já há vacina, já há pessoas sendo imunizadas. As equipes de saúde já sabem lidar melhor com os doentes e as perspectivas já são cautelosamente boas. Mas há ainda um tempo de espera para que possamos desaparecer novamente dentro de nossas banalidades cotidianas.

Meu refúgio neste ano foi justamente a literatura. A certeza de que, ao final do dia, eu vou deitar na cama com um chá para ler algumas dezenas de páginas tem me servido como um porto seguro, como um pequeno farol que me orienta na direção a seguir – ainda que, sim, a praia ainda pareça um tanto distante e o mar ainda esteja revolto. Ler como uma maneira de desaparecer deste mundo que tanto tem pesado nos últimos meses.

Recomendo, para o leitor desta coluna, a incursão pelos devaneios cotidianos de Knausgard. Todos os livros da série estão disponíveis pela Companhia das Letras. Quando tudo isto passar, podemos até mesmo combinar de tomar um café e partilharmos a nossa experiência de desaparecimento nas nórdicas paisagens da vida desta escritor norueguês.

Ainda bem que existem os bons livros.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora