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22 de dezembro de 2020
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10:01

Casulo de verão

Por
Sul 21
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Casulo de verão
Casulo de verão
A trama de Moebius (Reprodução)

Lucia Serrano Pereira (*)

É paradoxal. Esperamos o verão que vai se anunciando, a luminosidade que muda, o calor chegando cedinho, e as cigarras. Quando as cigarras começam a inundar o ar com sua sonoridade cheia, compacta, é o divisor de águas. Chegou o verão. Talvez pela lembrança de infância que hoje me dou conta, ficou marcada. Conexão direta com a casa da vó, que ficava ( ainda existe) na Dr. Vale, início da subida da lomba, dessas casas grandes com pátios nos fundos, longos, cheios de recantos. A parreira, onde nos domingos era o burburinho da conversa dos adultos, e para nós a criançada, o quadrado de areia, a grama para rolar, banho de mangueira, o jasmim manga super perfumado, enorme árvore para subir. E as plantas por todo lado.

As cigarras de depois do almoço, sol rachando e a gente esperando baixar pra poder sair de novo. Me dou conta que estar lá perto desse habitat de pé no chão e passarinho tomando “banho de areia” à tardinha era já coisa de férias. Dezembro, já sem as aulas da escola e os pais ainda trabalhando era o tempo de passar o dia na casa da vó.

As cigarras me deram uma absurda sensação do familiar desembarcando na Croácia, também em umas férias, há poucos anos. Era uma explosão delas naquele clima de verão em uma proporção quase ensurdecedora. De novo, é paradoxal. Um som que preenche o ar em volume altíssimo se prestamos atenção, e que ao mesmo tempo desaparece e se mistura à paisagem, se a cabeça está em outro lado.

Agora o paradoxal é esse dezembro de 2020; mês de natal e ano novo que reservamos sempre para muitos encontros, sejam os de finalizações, os de renovação, e mesmo aqueles que podemos fazer porque o tempo e as exigências começam afrouxar, de alguma maneira.

Já se sabe que vamos fazer o possível, que a restrição está aí e que ao mesmo tempo também tem várias formas de encontro que vamos inventando. Dessa vez é preciso também carregar um luto, saber que isso está junto, não ter que fazer uma compensação meio maníaca achando que é o que vai nos sustentar. Vamos ficar melhor se pudermos suportar sem a missão impossível dos recobrimentos totais.

Mas seguindo com as cigarras e a infância, aquela fábula meio que me aterrorizava, a da cigarra e a formiga. Que mal-estar! Porque a cigarra que era alegre, tinha um gosto enorme por dançar, cantar, atravessar as noites ( isso esta na fábula? não tenho tanta certeza) tinha que pagar tão caro, destroçada e enregelada indo bater na porta da formiga? Por via das dúvidas a gente acreditava na mensagem da moral da história, que medo, devia sim ser formiguinha para não ficar no desamparo.

Já adultos, sabemos que é preciso esforço para construir possibilidades de fazer frente à intempérie, mas também importa lembrar que se ficamos do lado de uma formiga sem gosto, canto, dança e o que mais houver que nos inspire, não vai. Mas hoje é muito mais que intempérie, excedeu todos os limites de nossa experiência. A dor do mundo que nos invade e emociona.

A cigarra que teria mais direito à dezembro dessa vez se desorienta. E o comentário que circula é a sensação de que em muitos momentos a formiga tomou conta, mais e melhor, roubando inclusive todos os intervalos. Não sei. Tiveram tempos muito diferentes entre si, mesmo dentro desses meses.

Aposto mais nos enlaces que podem nos tirar das figuras de duplicidade. Esse dezembro mais de casulo do que de rua. Mais de conversas, escritas, livros e filmes do que a miragem de passar o dia na areia da praia ou no café daquelas cidadezinhas que descobrimos, pouso nas tardinhas de viagem. Mas ao mesmo tempo não é bem isso ou aquilo, ou casulo ou rua. Temos certa propriedade de embaralhar por vezes alguns registros, felizmente, pois conta para a criação, o imaginar, o respirar. Nem que seja por pequenos trechos ou frações de experiências.

Tenho lido coisas ao mesmo tempo, por vezes, em outras mergulho em um só livro como um planeta para onde se transportar. Então é dentro mas também algo de rua. No mais recente tenho andado com Paul Auster na Nova York dos imigrantes. No Rio de Janeiro acompanhando a gripe espanhola. Pela Nigéria de Chimamanda, por Montaigne em seus Ensaios. Nessa semana Emicida, Caetano. Borgen, Years and years. Garimpos dentro de casa, convívios e coisas que nunca pensamos que faríamos, que eram só terceirizadas. Aposto nas nuances e nas intersecções. Podemos estar indoors mas ligados no fora, que “me olha”, me concerne, e abre em mim uma fenda. Como Freud já apontava, isso que se abre pode por vezes percorrer uma fenda da angústia mais o horror, mas também pode ir transitando em uma brecha que abre espaço para o exercício de nosso desejo.

Mais do que a cigarra ou a formiga a trama moebiana que mistura suas naturezas e que com outros traços podem dar trajetos surpreendentes. Mais disso, um pouco daquilo, talvez dê, pode ser que possamos, aqui precisa um pouco mais de esforço, ali dá para desconectar e passar um tempo com Keith Jarrett… De qual maneira podemos fazer pequenas combinatórias, nuances da torção, dos caminhos que ligam dentro/fora de forma que por vezes nem percebemos que cruzamos. Mas nos damos conta pelos ecos, pelas ressonâncias que fazem, felizmente, a partícula preciosa do viver.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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