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8 de dezembro de 2020
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10:04

Algumas lições sobre antirracismo

Por
Sul 21
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Pequeno Manual Antirracista, de Djamila Ribeiro (Reprodução)

Gerson Smiech Pinho (*)

Via de regra, um manual consiste em uma publicação que aborda os tópicos mais relevantes e indispensáveis acerca de uma matéria específica. Constituído desse modo, costuma apresentar conteúdos essenciais para que se possa estar minimamente informado e orientado no tocante a um determinado tema – como uma espécie de guia ou tutorial que dá indicações sobre como se movimentar em relação ao assunto em questão. Foi com esse espírito e expectativa em mente que mergulhei na leitura do “Pequeno manual antirracista” (Companhia das letras, 2019), escrito pela filósofa Djamila Ribeiro, recém premiado com o Jabuti de Ciências Humanas.

O livro é composto por um conjunto de lições escritas de forma sucinta e precisa, que permitem tanto compreender as origens do racismo quanto elaborar algumas estratégias para combatê-lo. Ao apresentar alguns caminhos de reflexão sobre o tema e contribuições de diversos autores e autoras a respeito do mesmo, possibilita a quem lê aprofundar a percepção de nossa estrutura social discriminatória e assumir responsabilidade por sua transformação.

Ainda que os eventuais leitores e leitoras da obra possam abordá-la proclamando-se preocupados com a problemática tratada, é provável que boa parte inicie a leitura sem identificar-se como racista. Afinal de contas, como refere a autora, em uma das maiores pesquisas feitas sobre o tema em território nacional, 89% dos entrevistados afirmavam existir preconceito racial no Brasil, ao mesmo tempo que 90% se reconheciam como não racistas. Estes dados revelam o enigmático e estranho fenômeno do país fortemente racista no qual não se encontram habitantes racistas em meio a sua população.

Tanto este paradoxo quanto o mito da “democracia racial” brasileira são postos em xeque desde as primeiras páginas do livro. Ao iniciarmos a leitura, somos convidados a desconstruir a ideia do racismo como um simples ato de vontade de um indivíduo com base em uma deliberação, para encará-lo como efeito de uma estrutura ampla e enraizada na violência, que envolve todo o sistema social e captura aqueles que estão inseridos em suas engrenagens, para além de sua decisão pessoal. Assim sendo, o que está em jogo não diz respeito a uma opinião ou posicionamento moral e individual, mas a um problema estrutural que envolve e implica a todos e a todas. Com isso, a pergunta desloca-se – do ser ou não ser racista passa-se para o que cada um e cada uma faz e pode fazer ativamente para combater o racismo.

Desse modo, este pequeno manual interpela quem lê a um compromisso direto com a questão, enquanto integrante ativo de um sistema que necessita ser enfrentado através da ação e pela modificação das formas de encarar o problema no cotidiano. Trata-se de enfrentar o legado da história escravagista de nosso país, fundada na violência, com marcas arraigadas e espalhadas pelo tecido social e econômico, cujos efeitos se observam de forma direta em diversos âmbitos, como no genocídio da população negra da periferia.

Enquanto escrevia este texto, encontrei um final de semana frio, com céu acinzentado, clima pouco usual para um dezembro portoalegrense. A cor desbotada do céu reverberou sobre uma das primeiras notícias que escutei durante o dia – duas crianças haviam sido mortas, na última sexta-feira à noite, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. As primas, Emily e Rebeca, foram baleadas enquanto brincavam na porta de casa. Este episódio soma-se ao de outras 22 crianças atingidas por disparos no Rio de Janeiro ao longo deste ano, dentre as quais 8 morreram. Nesta estatística, os dados são tão certeiros quanto os tiros, visto que as frequentes balas perdidas têm endereço definido – acertam com precisão e exclusividade a parcela da população que é preta e pobre.

Este acontecimento associa-se a outro, ocorrido há algumas semanas, quando um homem foi violentamente espancado até a morte por dois seguranças no supermercado Carrefour, em Porto Alegre. Tanto o episódio carioca quanto o gaúcho trazem um mesmo elemento em comum – a cor da pele de suas vítimas. A respeito do assassinato em Porto Alegre, pude escutar pontos de vista bastante diversos, dentre os quais aqueles que diziam não se tratar de um caso de racismo. Segundo estas opiniões, o fato de que João Alberto fosse um homem preto seria um detalhe aleatório, definido pelo mero acaso.

Enquanto psicanalista, estou habituado a prestar atenção aos detalhes e a questionar aquilo que aparenta acontecer ao acaso. Estes episódios, entre tantos outros, insistem em nos lembrar da urgência em refletir, falar e, sobretudo, agir no tocante ao racismo. Nestes tempos, em que atos racistas são ignorados por autoridades e governantes, a leitura e discussão de obras como o “Pequeno manual antirracista” sobrevém como indispensável. Neste pequeno grande livro, encontram-se não somente muitas ideias consistentes sobre o tema, mas também valiosas indicações para a ação.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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