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10 de novembro de 2020
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10:18

Viveiro de incertezas e … esperanças

Por
Sul 21
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Viveiro de incertezas e … esperanças
Viveiro de incertezas e … esperanças
Zygmunt Bauman: o nosso tempo como um “viveiro de incertezas” (Reprodução/Youtube)

Volnei Antonio Dassoler (*)

Qual é a posição metodológica mais apropriada para pensar a vida e os acontecimentos que emergem indissociáveis do dia a dia, das redes sociais à imigração, do consumo às relações afetivas, do capitalismo à democracia? Submetidos ao próprio regime do laço social que pretendemos analisar, a empreitada reflexiva em busca de uma síntese diagnóstica não é uma tarefa fácil, mas, quiçá, seja exequível. Ainda assim, experiências desse tipo são necessárias por fornecerem uma miragem de realidade em relação à qual nos situamos no tempo e no espaço, habilitando-nos, assim, a promover mudanças e interferir sobre essa realidade.

Nessa linha de raciocínio, leituras diagnósticas – como Modernidade líquida, de Zygmunt Bauman; Declínio do homem público, de Richard Sennet; Cultura do narcisismo, de Cristopher Lasch; A era do vazio, de Gilles Lipovetsky; Biopolítica, de Michel Foucault; e Necropolítica, de Achille Mbembe – apresentam diferentes nuanças discursivas para abordar as expressões assumidas pelo mal-estar em sua radicalidade incontornável. Certamente, adotar (ou aderir a) uma única chave de leitura seria contraindicado porque implicaria um reducionismo da amplitude da vida e da cultura. Apesar disso, neste momento, destacamos a perspectiva crítica do pensamento de Mbembe em relação ao etnocentrismo dos discursos hegemônicos sobre a modernidade, os quais excluíam ou rebaixavam formas de vida humana distintas daquelas contempladas pelo projeto da utopia moderna, que restringia o conceito de civilização humana à Europa rebaixando as demais formas de vida como primitivas.

Sabemos que o advento da modernidade foi sustentado por uma visão otimista do futuro e pela crença em um progresso ilimitado da ciência alinhadas a uma aposta no indivíduo e em sua liberdade. A aventura moderna amparou-se no discurso de um indivíduo pretensamente autônomo atravessado pela ambição da liberdade em relação a qualquer alteridade mais radical. Como consequência, a responsabilidade de solucionar os dilemas vividos recaiu sobre os ombros dos indivíduos, que, desde então, passaram a ser inteiramente responsáveis pelos seus fracassos.

Nessa linha de raciocínio, Bauman sugere que, assim como tantas outras coisas, a utopia teria sido privatizada e não diria mais sobre uma sociedade melhor, mas sobre indivíduos melhores ocupados em cuidar de si e dos seus. Contemporaneamente, a vida teria se convertido, então, em um projeto individual orientado por escolhas cada vez mais distantes do interesse em participar e interferir na vida pública, frente à qual, seduzido pelo discurso da meritocracia, o sujeito se mostraria indiferente. Em nosso país, esta realidade adquire contornos dramáticos na medida em que o desmantelamento progressivo das instituições e dos serviços do Estado destinados ao bem-estar social fortalece a estrutura de exclusão e desigualdade, produzindo o agravamento destas.

Em tempos de eleições e de uma profusão de análises acadêmicas ou leigas, vale citar o pensador português Boaventura de Sousa Santos, para quem os debates culturais, políticos e ideológicos que se desenrolam nos dias de hoje guardam um distanciamento problemático e inquietante com o dia a dia dos cidadãos comuns. Segundo ele, os intelectuais, assim como os políticos, perdem-se em desvios ideológicos e não conseguem ir além de proferir diagnósticos sobre o mundo, mas não com o mundo, deixando evidente a demissão da função mediadora com as aspirações da população. Como resultado disso, o cidadão comum fica à mercê de políticos e religiosos conservadores que apostam no radicalismo como uma via de transmitir e explicitar uma suposta familiaridade com os dramas de cada um. Para se contrapor a essa tendência, Boaventura de Sousa recomenda que os intelectuais deixem de ser de vanguarda para serem de retaguarda, pois isto lhes permitiria recuperar uma certa sensibilidade em relação às aspirações do sujeito comum.

De um século a outro, a representação de um mundo estável se dissolveu, suscitando um cenário incerto com efeitos paradoxais: angústia e esperança. Novas formas de convívio familiar, social e amoroso, além de profundas transformações no mundo do trabalho, criaram um ambiente inédito para a vida individual. Além de excitante e desafiador, não é difícil que este cenário pareça, sob a visão de Bauman, um “viveiro de incertezas”. Contudo, este tempo de incerteza, que deixa impactos visíveis no laço social pela incidência de discursos radicais, excludentes e virulentos, também se abre como um tempo de esperança e de potência criativa e inclusiva.

(*) Psicanalista. Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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