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7 de julho de 2020
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10:20

A peste e o retorno de Ulisses

Por
Sul 21
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<em>A peste</em> e o retorno de Ulisses
A peste e o retorno de Ulisses
“Onde é a casa de Ulisses? Ítaca? O mediterrâneo? Os dois?” (Reprodução)

Lucia Serrano Pereira (*)

Avançando com a leitura de A peste de Albert Camus, caminhamos. Assim como o narrador, o médico Bernard Rieux, que caminha pelas ruas da cidade. Encontramos Rieux transitando logo depois que a peste arrefeceu, já mais para o final da novela, quando finalmente é possível de novo ir retomando a cidade.

Reencontrar a cidade…

No livro, Rieux trilha as ruas noturnas em meio a um grande corpo ululante, com um grito que ele compreende muito bem. O grito dos que “compartilharam na carne e na alma um vazio difícil, um exílio sem remédios, uma sede jamais satisfeita”. Tinham em comum o amor, o sofrimento, o exílio.

E neste ponto da narrativa, vem algo de certa forma surpreendente, pois ele vai designar esses que chegam ao final da jornada da peste como emigrantes. Tendo atravessado miséria e privações, “emigrantes cujo rosto, primeiro, e agora as roupas, diziam da ausência da pátria longínqua”.

O emigrante. Aquele que se afasta, sai da sua terra natal.

A questão está posta. O quanto se volta para uma “terra natal” depois de uma peste. O quanto se vai para um lugar outro, onde implica um trabalho de construção por fazer?

Camus introduz nas paginas finais de sua ficção o enigma que nos implica, muito. Retornar, o que significa?

Volto aqui a uma referência valiosa que me acompanha, a de Barbara Cassin, em seu livro Nostalgia. Ela convoca, em sua interrogação pela nostalgia – o “mal du pays” – Ulisses em sua Odisseia.

Ulisses, em nossa literatura, concentra a expressão maior da navegação, das aventuras e da travessia de perigos terríveis. Também porta para nós as significações de não desistência, da determinação arriscada e tenaz de um retorno, da volta à casa, à emblemática ilha de Ítaca.

Barbara Cassin chama atenção para o paradoxo do chamado “Retorno de Ulisses”: ele está, de certa maneira, sempre retornando, e ao mesmo tempo, não para de não retornar. Ele fica fora de Ítaca por volta de vinte anos. Será que ele é regressável? Ela se pergunta. Será que ele vai conhecer o regresso “doce como o mel”?

No último trecho de sua navegação Ulisses fica retido vários anos na ilha da ninfa Calipso, mas tomado pela nostalgia, pela tristeza. A oferta de Calipso é sedutora, a de que se ele permanecer com ela conta com a garantia de amor e imortalidade. Se desejar seguir viagem, ao contrário, vai ao encontro de um caminho de tristezas e dificuldades. Mas ele não escolhe a imortalidade oferecida.

Ulisses escolhe a finitude, a passagem do tempo; quer envelhecer e encontrar sua Penélope de hoje, e não intacta, fixada. Não quer alguém que não tenha sido tocada pelo tempo ou pela experiência. E vai.

Quando desperta em Ítaca, depositado adormecido em terra pelos marinheiros, algo surpreendente: irrompe a angústia e ele grita desesperado: “ai de mim, a que terra cheguei?”

Não reconhece sua terra natal. A pátria não tem nada de evidência.

A ponto da deusa Atena precisar aparecer disfarçada de mortal e nomear para ele: é Ítaca.

E o que segue é todo um trabalho de reconhecimento. Como vai reconhecê-lo o filho, o cachorro, a ama, e por fim Penélope. Um processo cheio de nuances, nada é direto e instantâneo. É diferente do que poderíamos esperar, que por fim ele chegasse em casa e fosse tudo reencontro, tranquilidade, festejo.

Mas Ulisses, que passou todos aqueles anos no mar ansiando essa volta, ainda não concluiu, não pode ficar. Vai ficar somente três dias em casa, para novamente partir. Ainda precisa realizar uma última tarefa oferecida a Poseidon, para ganhar sua chegada.

Ele deve ir ao extremo estrangeiro, carregando um remo nas costas, até um lugar onde não se conheçam as glórias de Ulisses, suas aventuras, e tão longe ao ponto de que se confunda um remo com uma pá. ( Lembremos aqui os apontamentos de Benjamin quando fala do saber que vem pelo marinheiro, horizontal, que atravessa os espaços entre lugares distantes, e o saber do camponês, saber do poço, de quem dali nunca saiu mas tem o saber das ancestralidades)

Ulisses precisa plantar o mar na terra. Reunir o mar, as errâncias, as aventuras, com a terra, onde se enraíza seu leito talhado em uma oliveira, em torno do qual se construiu a casa. Onde é a casa de Ulisses? Ítaca? O mediterrâneo? Os dois? Onde encontramos nossa casa, nossa cidade?

Assim, a operação de retorno não é simples. Se fosse simplesmente voltar ao anterior, o risco seria se ficar aprisionado a um tempo circular, a uma nostalgia fechada, a um retorno ao idêntico. Diferente disso, há mais um fazer, como essa outra volta que implica “retornar” para um lugar que comporte o relance de uma abertura. Se trata de poder articular retorno e desejo.

Acompanhados por Rieux ao introduzir a figura do emigrante, e Ulisses, que diz do levar adiante um movimento para poder constituir um novo lugar, podemos seguir pensando um horizonte possível. Levando em conta de que onde pensamos que poderíamos imaginar o retorno para o mais conhecido, vamos precisar carregar junto uma operação de alteridade. Na poética da Odisseia, enlaçar o mar e a terra.

Constante movimento com as diferenças.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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