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16 de junho de 2020
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10:30

Quando as palavras nos fazem ver outras coisas

Por
Sul 21
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“Freud propôs aos pacientes assumirem o lugar de narrador-testemunha-protagonista”. (Reprodução)

Marcia H. de M. Ribeiro (*)

Vivíamos num ambiente de fantasmagorias.
Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere

Escrevo um livro para analfabetos. Assim a escritora italiana Elsa Morante definiu seu romance, A história, publicado pela primeira vez em 1974. Pediu ao editor que fosse uma edição barata, acessível a todos os públicos leitores. Naquele ano foram vendidos mais de oitocentos mil exemplares. Evidentemente, não apenas pelo custo. A cena política sob o regime fascista e a Segunda Guerra ambientam a trama contada por um narrador-testemunha em terceira pessoa. O esforço para encobrir a ascendência judia e a melancolia de Ida; o adolescente Nino desejoso de conquistar um lugar especial ao aderir à causa nacionalista; e o pequeno e sensível Useppe em sua luta para crescer num mundo em colapso. Personagens do povo na cena político-social, sob regime de terror da guerra, alçados à condição de protagonistas. Força explícita da narrativa. Sem a licença da autora, arrisco mais justo dizer “um livro escrito para ignorantes”, para os que desconhecem aquela história ou para os que leram somente as versões oficiais.

Nos anos subsequentes à Segunda Guerra surgiram as primeiras obras de literatura de testemunho. Ganhou espaço o narrador-testemunha em primeira pessoa, contando a história sob a perspectiva de quem viveu experiência, traumática, decorrente de políticas de exclusão, segregação, extermínio. Os livros de Primo Levi são eloquentes. Mas há outros, muitos outros, como Memórias do Cárcere (1953) de Graciliano Ramos, publicado após sua morte. Escrever em primeira pessoa subvertendo os consensos da tradição literária da época exigiu trabalho. Como esclarece o próprio autor no preâmbulo da obra:

Desgosta-me usar a primeira pessoa. Se se tratasse de ficção, bem: fala um sujeito mais ou menos imaginário; fora daí é desagradável adotar o pronomezinho irritante, embora se façam malabarismos por evitá-lo. Desculpo-me alegando que ele facilita a narração.” O pronomezinho irritante, a voz do narrador-testemunha em primeira pessoa, ilumina o enlace inexorável entre história individual e história coletiva. Graciliano, no entanto, não estava convencido que a obra se reduzisse a uma exposição plana, asséptica, cronológica de fatos vividos: “Afirmarei que sejam absolutamente exatas? Leviandade.[…] Outros devem possuir lembranças diversas. Não as contesto, mas espero que não recusem as minhas: conjugam-se, completam-se e me dão hoje impressão de realidade.”

A partir dos anos mil novecentos e setenta assistimos a uma expansão das publicações literárias de testemunho com narrador em primeira pessoa. O processo de escrita, como uma das vias possíveis do trabalho de elaboração da experiência, se realiza no tempo posterior ao viver traumático. O tempo de narrar conjugando os tempos de compreender e concluir no ato da escrita. A recepção daqueles testemunhos no laço social transtornou as narrativas oficiais sobre os acontecimentos históricos dos períodos de exceção, cujas experiências frequentemente foram expurgadas da cena social, a começar pelos livros didáticos de história. Depois disso, a literatura de testemunho se tornará companheira frequente da história nas salas de aula.

Freud produziu com sua genialidade, no final do século XIX, outra torção no lugar do narrador-testemunha ao inventar a psicanálise. Acompanhando Charcot nas rondas hospitalares, se inquietou com a cena clássica de médicos observando e descrevendo os sintomas das histéricas. A verdade sobre o sofrimento da paciente, antecipada pelo saber médico da época, concretizava-se sobre os corpos nas terapêuticas cruéis generalizadas. Freud concebeu os sintomas como enigmas, e por isso também propôs aos pacientes assumirem o lugar de narrador-testemunha-protagonista, enquanto se mantinha na posição de escuta. O que testemunha o que pode ser dito quando há, por princípio mínimo, confiança. Desde lá se reconhece os efeitos da palavra proferida, para o melhor e para o pior, a depender também das condições para recepcioná-la.

(*) Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA).

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