![O avesso da empatia](https://sul21.com.br/wp-content/uploads/2021/03/20200607-07062020-img_9918-450x300.jpg)
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Luciano Mattuella (*)
A contemporânea glorificação da empatia como forma de laço social me parece, antes de tudo, uma das evidências sutis de fracasso civilizatório. Entendo aqueles que buscam na empatia uma forma de estar próximo e ajudar quem necessita, mas para mim é impossível não ver nessa figura do “empático” alguém levemente tingido por um verniz narcísico socialmente bem acolhido.
A concepção comum de “se colocar no lugar do outro”, ainda que aparentemente muito valorosa, parece retornar sempre ao próprio eu que produz a ação. Supõe que, para estar do lado do outro, é preciso compreendê-lo – como se fosse necessário sentir o que o outro sente para então poder ajudá-lo. Vejo aí, a bem da verdade, uma forma de apagamento da alteridade do outro, de redução do outro a um alter ego, a uma versão mimética do mesmo. Desta forma, o campo da experiência do sofrimento humano se reduziria aos limites do meu sofrimento.
Encravado na palavra empatia está um elemento que me faz muita questão: o termo pathos. Como psicanalista, creio ser impossível sustentar uma clínica sem que sejamos, antes de tudo, psicopatólogos, ou seja, sem que nos ocupemos com a definição do que significa sofrimento, mal-estar, sentimento, paixão… todas estas declinações modernas do pathos. Estar a par do psicopatológico de uma época implica escutar e dar lugar a uma multiplicidade de formas de habitar o mundo, de ser interrogado pela Cultura em suas mais diversas formas de subjetivação e dessubjetivação. Afinal, penso que há modalidade discursivas de dessubjetivação, de produção de marginalidade e invisibilidade. Aos dessubjetivados, resta o ato reivindicatório de um lugar em uma Cultura que não o reconhece – neste sentido, este ato não é violento per se, mas é uma resposta à altura a uma estrutura violenta de silenciamento. É importante poder diferençar a violência do poder da violência do marginalizado: a primeira é o modo de manutenção das coisas como estão, dos campos da demanda em sua relação com o ideal vigente; a última, forma radical de busca por reconhecimento e sustentação do desejo.
Como Freud já nos ensinava há mais de cem anos, o agir (o acting out) é um dos recursos para fazer-se escutar: é uma demanda para entrar em cena, para ter um lugar no mundo – mas é uma forma de buscar ser entendido. A passagem ao ato, por outro lado, é o rompimento da cena, é a dissolução – muitas vezes abrupta – do laço social. Entretanto, nem toda ruptura do laço se dá pela via da pulsão de morte: pode ser também uma forma de explicitar a impossibilidade de se continuar vivendo dentro de um certo estados de coisas, de rebelar-se contra estar à margem de um discurso que parece tão bem acabado. A passagem ao ato, portanto, como uma forma de questionar o instituído e uma aposta na produção de algo novo. O acting out explicita que o rei está nu; a passagem ao ato sugere que o rei nem precisaria estar aí.
Neste sentido, a imagem que nos interpelou a todos – ou a muitos de nós, pelo menos – de um policial norte-americano asfixiando George Floyd até a morte parece ter tido o efeito de uma convocação ao ato. Para mim, assistir ao vídeo deste assassinato à luz do dia foi também um exercício de esvaziamento narcísico, por assim dizer: acho que é impossível para um caucasiano de classe média como eu ser empático com o sofrimento de Floyd. O que não significa, de forma alguma – e faço questão de deixar isso bem claro – que eu não possa fazer nada em resposta a esta brutalidade. Mas antes de agir eu prefiro perguntar àqueles que se viram estrangulados junto com Floyd o que eu posso fazer. Se realmente “as vidas negras importam” (#blacklivesmatter), então me parece óbvio que sejam os negros que devam pautar o movimento de resistência. Como um cidadão branco, prefiro fazer a pergunta: como os meus privilégios podem ajudar a romper com este estado de coisas mortífero? Qual ato me é possível neste momento?
Acredito haver formas, portanto, de estar junto àqueles que sofrem sem necessariamente precisar sentir o mesmo que eles sentem, sem a pretensão de colocar-se em seu lugar. Falo aqui de uma impossibilidade, e não de uma impotência. O nosso lugar na Cultura abre um mundo, mas também limita a moldura do que vemos na realidade. Encontrar um outro não precisa ser estar diante de um espelho, mas talvez de um abismo. O mesmo se dá, penso, num encontro psicanalítico: cada um ali traz consigo suas histórias e sua narrativa de inscrição no discurso social corrente: não há como sair da própria vida para chegar até o outro, mas isso não significa que a vida se resuma àquilo que um pode contar. O exercício de escuta, de uma escuta legítima, parece implicar a possibilidade, na verdade, do desencontro radical: reconhecer a legitimidade da fala do outro não implica compreendê-lo. A escuta quase como uma forma de antipatia prática. Há uma alteridade que interpela e que, por seu caráter estrangeiro, pode me convocar a desnaturalizar o instituído, a fazer com que eu me pergunte pela minha inserção na estrutura social.
Assim, retorno ao tema da falácia da empatia: ora, vimos um “contra-movimento” surgir em resposta ao #blacklivesmatter: nas redes sociais, começou a ganhar força a hashtag #whitelivesmatter ou mesmo “todas as vidas importam” (“all lives matter”). Sim, todas as vidas importam, mas não são todas as vidas que estão por um fio como o que acontece com a vida de negros e pobres – então, neste momento, estas vidas importam mais. Basta vermos os dados recentes a respeito dos adoecimentos e mortes por COVID-19 nos Estados Unidos: apesar de 18% da população daquele país ser declaradamente negra, 52% dos casos e 58% das mortes são de negros. Em alguns estados norte-americanos, 83% dos internados são negros (https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1047279720301769?via%3Dihub#cebib0010). Não há, evidentemente, um fator biológico aí – o que se encontra, sim, são explicitadas as disparidade sociais. O maior grupo de risco em todo o mundo são os idosos, os pobres e os negros.
As manifestações nas ruas, como temos visto nos Estados Unidos, na Europa e, ainda timidamente, aqui no Brasil – parecem ilustrar que cada vida importa, mas que esta balança de valor tende mais para um lado no grande discurso do mercado e do capital. E aí é necessário que se faça justiça a esta disparidade – para, talvez, em algum momento seguinte poder-se dispensar a balança como um todo. O movimento #whitelivesmatter é o cúmulo da empatia: é uma forma de enunciar que a vida do outro só tem valor quando a minha vida também tem, que só preciso me ocupar do outro se eu me identificar imaginariamente com sua dor. É uma forma tacanha de silenciar o outro ao sequestrar dele a sua narrativa singular de sofrimento. Amar o próximo como ama a si mesmo é o mesmo que não amar o outro, mas apenas a si mesmo. É o adágio sepulcral da empatia, máxima que tem como um de seus efeitos a inibição do ato.
Afinal, algo que o psicanalista francês Jacques Lacan nos ensina é que o ato, em sua potência mais fundamental, é a produção de algo novo que dispensa o assentimento dos pares, dos vizinhos. Em outros termos, todo ato propriamente dito rompe com o instituído e ignora as demandas de amor da Cultura. O agir por amor tem sempre um elemento narcisista, porque, em última instância, é um agir para ser amado – é uma forma de reforçar o laço social vigente, com tudo que isso implica. Agora, um ato de desejo vai para além das demandas do social e funda a possibilidade de produção de uma nova realidade: é um encontro com um vazio constituinte e fértil. Neste sentido, penso que o ato realmente realizado sempre é político, uma vez que coloca o status quo em crise e produz fissuras no que já está dado. O ato é, em suma, civilizatório, é uma aposta da reconstrução do mundo a partir de uma outra ficção possível, uma convocação à desnormatização das demandas de uma época.
Política é, antes de tudo, o que fazemos para os outros – o resto é demanda de amor.
(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.
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