Alfredo Gil (*)
“Ils m’ont défendu de parcourir une ville, un point, mais ils m’ont laissé l’univers entier; l’immensité et l’éternité sont à mes ordres”.
Xavier de Maistre
Dia 17 de março, o governo francês impôs o confinamento obrigatório como principal medida no intuito de impedir a propagação do coronavírus. Como nem tudo pode parar – do nosso funcionamento fisiológico, que nos obriga a compra de alimentos, ao funcionamento dos hospitais, essenciais nesta luta, passando pela preservação de um mínimo de bem estar social -, o governo decidiu regulamentar o confinamento por meio de um atestado. Ele é preenchido para se obter a autorização de quebrar o isolamento sob a condição de satisfazer uma das sete situações derrogatórias. No meu caso, por exemplo, tenho direito de justificar minha saída, seja para fazer minhas compras de primeira necessidade, ou passear com meu cachorro. Ele tem que ser apresentado em caso de fiscalização pelas autoridades para evitar uma multa de 135 euros.
Mas tenho ainda uma terceira justificativa que se impõe por uma requisição que recebi do serviço hospitalar de psiquiatria onde trabalho. O fechamento do hospital-dia, que diariamente acolhe em média quinze pacientes, é uma das medidas impostas para evitar a disseminação do vírus. O tratamento medicamentoso fica mantido. Já para o acompanhamento psicológico, a equipe teve que se adaptar para preservar um mínimo de relação terapêutica junto aos pacientes que, na grande maioria, tem como único laço social suas atividades neste hospital. Então decidiu-se que, durante o confinamento, haveria dois tipos de contato: ligação telefônica para alguns e visita à domicílio para outros. Porém, logo constatou-se algo que contrastou com nossas inquietudes iniciais: esquecemos que muitos vivem, de certa forma, confinados há muitos anos em suas existências. Um deles me disse, com um traço de humor: « Estou confinado há quinze anos, posso dar conselhos de confinamento para os que precisarem ». Outros estão hermeticamente confinados dentro de si, de modo que se pode mudar a decoração do seu mundo externo, presença ou ausência de semelhantes, sem que quase nada mude internamente para eles.
Desde então fiquei mais atento diante dos efeitos « benéficos », para muitas pessoas, do confinamento obrigatório.
Uma senhora de 80 anos relata como as pessoas tornaram-se mais sensíveis com o confinamento e passaram a dar uma atenção especial a ela. Os vizinhos passaram a perguntar-lhe se necessitava de algo. Ela conta que uma outra, que nunca a tinha dirigido a palavra, cruzou seu olhar na janela e começou a conversar: « Há uma eternidade que eu moro sozinha e ninguém se preocupava no bairro ».
Entre colegas, temos observado alguns adolescentes, que normalmente vivem suas relações sociais com muito sofrimento, se sentindo em férias graças à medida de isolamento. Um amigo psiquiatra me dizia que um paciente com graves rituais obsessivos de limpeza sentia-se mais aliviado com as recomendações de lavagem de mãos preconizadas pelo governo na luta contra o vírus. Sua loucura e suas higienes desmedidas encontram conformidade com as novas exigências sociais permitindo a redução de seu tormento subjetivo habitual.
Num programa de rádio, ouvi relatos de solteiros que se sentiam também mais aliviados com o confinamento. Desenfreados em sites de encontros, eles diziam não ter mais este fardo para carregar durante este período, se diziam livres « da injunção social, de poder escapar da frenesi do dating e do cansaço do supermercado de aplicativos de encontro».
Quem poderia imaginar, apenas um mês atrás, que a globalização teria sua atenção completamente absorvida por um mesmo objeto ? Que passaríamos da volubilidade e multiplicidade de objetos que os quatro cantos do mundo secretam, excitando continuamente nossos órgãos de sentido, a um único inapreensível e ameaçador objeto ? Que um vírus teria o poder de nos extrair de nossos automatismos, seja profissional, familiar ou outros, e que nos fixaria numa relação de espaço e tempo em que a única exigência é a paciência e a espera? Que sua propagação calaria a tensão galopante no Oriente Médio, a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, ou o risco de mais uma crise financeira que vinha se anunciando? Que graças ao recolhimento do homem, a natureza voltaria a respirar e que os efeitos no ecossistema seriam tão notáveis em tão pouco tempo? Que a redução drástica da presença de pessoas nas ruas, da redução da poluição sonora e do ar abriria as portas de várias cidades a outras espécies animais em zonas insólitas ? São javalis dentro de Marselha, patos passeando em família nas ruas desertas de Paris e até na avenida chamada « periférica » que circunda esta cidade, além dos golfinhos nos portos do sul da Itália e tantos outros pelo mundo afora.
Para alguns, o que se passa tem inspirado a releitura da Peste, de Albert Camus. Pessoalmente, graças a minha irmã, Beatriz, redescobri Voyage autour de ma chambre em que Xavier de Maistre, preso durante quarenta e dois dias em Turim, escreve, em 1794, quarenta e dois capítulos em forma de diário. São reflexões em monólogo mas que convidam o leitor a pensar que o isolamento imposto pode ser uma ocasião para cada um de não perder o encontro consigo mesmo, o qual tempera e condiciona a retomada para com os outros que nos aguardam.
O escritor e militar francês termina o último capítulo anunciando o fim de seu encarceramento: « Charmant pays de l’imagination ! toi que l’Être bienfaisant par excellence a livré aux hommes pour les consoler de la réalité, il faut que je te quitte. ( Encantador país da imaginação! tu que foste concedido aos homens, por excelência, pelo Ser benevolente para consolá-los da realidade, é preciso que eu te deixe ) ».
(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: alfredo.gil@wanadoo.fr
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