![Notas sobre o isolamento](https://sul21.com.br/wp-content/uploads/2021/03/20200401-img_5771-450x300.jpg)
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Gerson Smiech Pinho (*)
De um modo um tanto abrupto, a realidade a qual estávamos habituados se rompeu. Entre uma semana e outra, em meados de março, a disseminação de um vírus limitou a circulação das pessoas, com a indicação de que todos e todas permaneçam encerrados em suas casas, desde então. Subitamente, o espaço doméstico passou a abarcar nossa existência de forma quase integral e contínua, transformando-se em local para trabalho, atividades escolares, conexão com amigos e parentes, diversão, exercícios físicos e assim por diante. Salas de estar e dormitórios foram rapidamente convertidos em escritórios, consultórios, escolas, áreas de lazer e academias de ginástica.
Se, por um lado, a maior parte dos laços passaram a ser sustentados virtualmente através de dispositivos eletrônicos, por outro, temos convivido com a presença física concreta, continuada e ininterrupta de nossos companheiros e companheiras de confinamento. Mesmo que já estivéssemos habituados a partilhar da intimidade e do cotidiano domésticos ao lado destes, a novidade é que se têm experimentado um convívio quase desprovido de intervalos, tanto no tempo quanto no espaço, o que não deixa de produzir uma série de efeitos no âmbito das relações. Se a saída para a crise que experimentamos é o distanciamento social para evitar o ajuntamento de pessoas, sua contrapartida é que a proximidade tem se processado, como nunca, no espaço doméstico. Esta configuração inédita de nosso cotidiano impõe a produção de formas de convívio e relacionamento pouco usuais, tanto familiares quanto conjugais, as quais demandam um importante trabalho de reposicionamento frente a essas modificações.
O tempo da vida em que a presença de outro humano se faz necessária, de modo mais ou menos contínuo e permanente, coincide com o início da existência, quando se é um bebê ou uma pequena criança. Ainda assim, mesmo que a repetida presença dos pais ou cuidadores ofereça segurança e estabilidade, ela também é atravessada por pequenos intervalos, por idas e vindas, que permitem estabelecer as primeiras experiências de diferenciação e descontinuidade. Tal espaço de distanciamento e separação se amplia com a entrada na escola, com a convivência com os pares e com o gradual incremento da vida social extra-familiar. Desse modo, ao longo da infância e na passagem para a adolescência, a circulação se amplia à medida que criam-se novos laços e modificam-se os já existentes.
Com o necessário isolamento social decorrente da pandemia que atravessamos, esse espaço de circulação foi repentinamente subtraído. Pais e filhos, adultos, crianças e adolescentes coexistem em um tempo sem intervalos, dentro de uma mesma habitação, porém, evidentemente, ainda com a necessidade de delimitar lugares para sustentação da vida pessoal de cada um.
Pais e mães procuram circunscrever tempo para manter suas atividades profissionais em meio à interpelação dos rebentos e as solicitações próprias à vida em família. As crianças demandam a presença e a atenção dos pais, com a necessidade de dar conta das atividades escolares, bem como de delimitar tempos para estudo, lazer e diversão. Finalmente, os adolescentes buscam um distanciamento mínimo dos pais e da família, necessário para a conquista de autonomia que lhes é tão cara, paralelo a um desejo vital de estar concretamente com seus pares, ainda que estejam habituados aos encontros virtuais.
O isolamento social propicia que os diferentes territórios da vida familiar se misturem e se confundam num único e mesmo espaço. Adultos, crianças e adolescentes, todos vivendo em uma espécie de presente contínuo, não contam mais com a separação habitual propiciada por lugares concretos, como a escola e o trabalho. Ainda que tenhamos perdido transitoriamente nossas possibilidades de deslocamento, o mapa que organiza a geografia de nossas vidas é, em grande parte, subjetivo, composto de palavras e pelos sentidos por elas delimitados. No que diz respeito à vida em família e à invenção de formas provisórias para conviver, a função ordenadora e criativa da palavra cumpre novamente, e como sempre, seu papel essencial para a diferenciação de tempos e espaços.
À perda do ritmo habitual de nossas vidas, soma-se a experiência de desamparo pelo avanço de uma doença que expõe nossa condição de fragilidade. Ainda que a travessia desse tempo, sobre o qual ainda compreendemos tão pouco, exija um esforço para a reinvenção das formas como vínhamos nos relacionando, dependendo daquilo que possa se produzir agora, talvez possamos legar às novas gerações a importância de um movimento coletivo sustentado na solidariedade e no bem comum.
(*) Psicanalista, Membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat.
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