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21 de abril de 2020
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10:15

Histórias breves

Por
Sul 21
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 Foto: Luiza Castro/Sul21

Marcia H. de M. Ribeiro (*)

Todos os dias são iguais, e nenhum se parece.
José Saramago em Levantado do Chão.

Lugar comum

Da janela da sala encontro a casa que pensava abandonada com a porta balcão aberta. Ali uma senhora magra antes de cabelos negros se recosta no parapeito com sua xícara fumegante. Olhamos o mesmo horizonte azul límpido antes encoberto por nuvens de fumaça multitons cinza. Não fosse esse novo deus onipresente da microbiologia nunca teríamos nos encontrado, antes atarefadas com nossas vidas na rua. Tantas janelas ocupadas por corpos, antes fechadas por cortinas pesadas contra o sol. Hoje convidado sem cerimônia a repousar na sala de estar. Silêncio da manhã rasgado pelo canto das maracanãs, dos pintassilgos e das aves de rapina, antes abafados pelas rodas no asfalto e as buzinas de urgentes motoristas.

Estamos em março, quando já não se deve transitar pelas ruas como antes.

Congelamento incendiário

Era cedo da manhã quando chegamos para inspecionar a prisão de adolescentes numa cidade distante da capital. Os corpos em trapos, dividindo pedaços de espuma deitadas nas celas úmidas e malcheirosas, anunciavam outro dia difícil.

Fomos levados à sala da direção, e conversávamos sobre trabalho quando pancadas metálicas e urros abafaram outras vozes. Barulho, angústia e medo fundidos. Ressoava no peito uma rebelião.

Quando a indignação dos adolescentes diminuiu pela expectativa de serem ouvidos, soubemos que havia meses a Unidade estava congelada. Congelar é um dos nomes dessa medida de segurança, usada após situações de descontrole disciplinar, que duplica o confinamento. Proíbe a circulação e atividades fora da cela, especialmente as que animam sonhos, evocam prazer e inspiram desejo de outra vida em liberdade. Constrangidos à prisão dentro da prisão todos os dias durantes muitos dias, veem minguar a ideia de transitoriedade necessária para atravessar radical experiência de privação de liberdade. O sofrimento contínuo incendiando a rebelião que esperavam congelada.

Suprimidos os intervalos do ritmo cotidiano, todos os dias são iguais, e se parecem.

Futuro do passado ou da força para transitar na zona intermediária entre a negação e o alarmismo.

Na feira livre de domingo pela manhã, metade das bancas abertas, público reduzido. As pessoas se esquivam umas das outras. Uma mulher esbraveja pelo desrespeito ao preconizado “dois metros de distância”. De um golpe, o perigo personificado no vizinho de compras. O feirante sorridente lembra o bom dia, e agradece me oferecendo um tomate para inteirar a conta. Em nossa direção caminha sem pressa um senhor com um rádio no bolso da camisa. Toca uma balada romântica, dançante. Ele para na frente da dona de rosto crispado. Com sorriso maroto confidencia para todos nós, olhando para ela: – Com essa música até te tiraria para dançar agarradinho fossem outros tempos. Sorrimos, inclusive a dona do rosto antes crispado, fisgados pelo desejo compartilhado.

Saudade da minha vida ordinária.

(*) Psicanalista, Membro da APPOA e do Instituto APPOA.

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