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24 de outubro de 2017
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09:30

Mãe!

Por
Sul 21
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Mãe!
Mãe!
A obra de arte não é uma mensagem acabada, mas sim um prisma que abre o campo das significações e nos convida ao pensamento crítico e ao posicionamento subversivo. (Foto: Divulgação)

Luciano Mattuella, da APPOA

Acredito que as manifestações artísticas podem ser entendidas como os sonhos de uma determinada época: a partir de elementos aparentemente banais, estas produções (filmes, livros, séries…) apontam para aquilo que insiste como não-dito no discurso manifesto, são como um espelho que reflete uma imagem estranhamente familiar dos avessos da Cultura. Como todo sonho – disso já nos dizia Freud há mais de cem anos –, estas narrativas podem ser lidas de diversas maneiras, nunca se esgotando em um sentido único – apesar do que temos testemunhado ultimamente. A obra de arte não é uma mensagem acabada, mas sim um prisma que abre o campo das significações e nos convida ao pensamento crítico e ao posicionamento subversivo.

Mãe! (assim mesmo, com ponto de exclamação), novo filme de Darren Aronofsky – diretor de, entre outros, Réquiem para um Sonho (2000), Cisne Negro (2010) e Noé (2014) – é um ótimo exemplo disso; mas, no caso, se trata mais de um pesadelo que de um sonho. O filme tem no seu elenco nomes consagrados como Jennifer Lawrence (Jogos Vorazes, A trapaça), Javier Barden (Onde os fracos não têm vez, Mar adentro), Michelle Pfeifer (A época da inocência, Uma lição de amor, entre tantos outros) e Ed Harris (recentemente visto no seriado Westworld).

Falar sobre este filme – escrevo esta coluna poucas horas após sair do cinema – é uma necessidade: impossível encerrar a sessão sem sentir-se impelido a comentá-lo, interpretá-lo, compartilhá-lo com alguém. Esta é minha primeira recomendação: vá ver Mãe! acompanhado.

Minha segunda recomendação: vá sem saber muito sobre o longa. Neste sentido, o leitor pode ficar tranquilo: passarei longe dos spoilers e não darei detalhes da trama.

A sinopse é absolutamente banal: um casal (Jennifer Lawrence e Xavier Barden) mora em uma casa isolada de tudo e recebe a visita de um desconhecido (Ed Harris), alguém que se diz um médico cirurgião recém-chegado na cidade. O marido é um escritor em plena crise criativa; a esposa, uma mulher submissa ocupada em reformar a casa que foi completamente destruída por um incêndio cuja causa não sabemos no começo. A chegada do visitante desestabiliza o ambiente e dá início a uma série de eventos absolutamente siderantes.

Ao sair da sessão, entretanto, o leitor verá que esta sinopse não diz absolutamente nada sobre o filme. Somam-se ao longo da narrativa indícios cada vez mais presentes que atentam o espectador para o fato de que Mãe! conta sempre uma outra história, uma história sempre aludida. Aronofsky entrega uma obra-prima de roteiro: no plano do conteúdo, trata-se uma alegoria em plena potência; no plano da forma, a sensação de assistir Mãe! é a mesma de quando estamos tomados por uma noite de pesadelos – o tempo parece se dilatar e ficamos sem saída, entregues à esperança de que aquele sonho ruim acabe. O filme tem aproximadamente duas horas, mas saí da sessão como quando acordo de uma longa noite de sonhos angustiantes.

A segunda metade do filme, em especial, entrega ao espectador algo muito diferente do que ele foi buscar caso tenha se interessado apenas pela sinopse. O filme acaba por flertar com gêneros como suspense e mesmo horror – somos tragados para dentro da história como cúmplices de uma série de eventos que vão se avolumando desenfreadamente. A câmera busca sempre o plano fechado, o que suscita uma bem-sucedida sensação claustrofóbica: estamos sempre perto demais dos acontecimentos, dentro da cena, nunca confortáveis. Mais um detalhe: o filme não conta com trilha sonora – todos os sons são dos próprios barulhos da casa e de seus habitantes.

Em certo ponto, o espectador acaba por se deixar atravessar pela alegoria exposta, o que faz pensar “como não pensei nisso antes?” – como se uma solução para um problema subitamente tivesse surgido diante dos olhos (como nos sonhos em que aparecem respostas para dilemas diurnos). O filme é todo ressignificado, o roteiro nos propõe uma modificação na nossa posição de entendimento – várias camadas de significados acabam se sobrepondo, lançando o espectador em uma construção em abismo perturbadora. Como a fala de alguém deitado no divã de um analista, cada palavra sempre remete a outra coisa, a um outro sentido não evidente. Méritos para o roteiro e para a atuação.

Assim, Mãe! convoca o espectador no lugar de intérprete, de leitor: é um filme que aposta na nossa disponibilidade à metáfora e à abertura aos múltiplos sentidos da produção artística.

Disponibilidade de que infelizmente carecemos tanto nestes tempos em que as obras de arte são tomadas em sua literalidade mais rasa e superficial, tempos de um embrutecimento estético que não faz mais do que nos tornar ainda mais reféns dos pesadelos nefastos que nos assombram em plena luz do dia.

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Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.


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