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12 de setembro de 2017
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10:30

Experiências com a solidão

Por
Sul 21
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Experiências com a solidão
Experiências com a solidão

Por Fernanda Breda

Toda a infelicidade dos homens provém de uma coisa só: ser incapaz de ficar sossegado no seu quarto.

Com alguma variação na tradução, encontrei recentemente essa citação de Blaise Pascal na leitura de dois livros que tratavam, de forma muito diversa, temas semelhantes.

O primeiro deles é “A invenção da Solidão”, de Paul Auster, publicado em 1982, pela Companhia das Letras. Um de seus escritos autobiográficos que evoca temas universais: a morte do pai, as separações, a paternidade e a solidão. Com esse livro, Auster se inclui na história das letras e passa a ser uma referência na literatura contemporânea. Ao inventar uma escrita que capturasse não só a morte de seu pai, mas sobretudo que inscrevesse a ausência dele durante sua vida, pela primeira vez Paul Auster publica com seu sobrenome paterno (antes assinava apenas Paul Benjamin, sobrenome materno). Ampliar a condição de estar só teve como efeito uma belíssima narrativa, bem como a possibilidade de inscrever seu nome no encadeamento das gerações, na filiação ao pai. No livro, a imagem da escuridão absoluta – das trevas da solidão em seu pequeno quarto em Nova Iorque – cede lugar à imagem da caneta mergulhando no tinteiro negro diante de uma folha em branco: metáfora da travessia do vazio à criação artística.

O segundo livro que cita essa frase de Pascal é da historiadora Michelle Perrot, “História dos Quartos”. Um estudo minucioso sobre os quartos de dormir, abrangendo uma grande variedade deles: desde o quarto individual, passando pelo quarto de crianças, mulheres, quartos de hotel, de operários, de doentes… até chegar em quartos estabelecidos para a reclusão, para o aprisionamento. Aborda desde a liberdade que pode haver na experiência da solidão até seu extremo oposto: a morte, o isolamento. Significados tão diversos quanto a amplitude que evoca o tema da solidão, nos lembrando que é possível vivenciá-la tanto como potência criativa e experiência de liberdade, quanto experimentá-la como sofrimento e desamparo.

O que faz essa frase de Pascal em livros tão distintos?

Partindo dessas palavras: solidão e isolamento, novos elementos advêm. Tomadas de um certo ângulo podem ser pensadas como sinônimos; de outro, se associam a ideias opostas: é necessário vivenciar a solidão para que justamente se possa estar com os outros.

A primeira experiência de solidão, que irá determinar muitas formas de intimidade na vida adulta, ocorre na infância. É quando começamos a estabelecer um espaço só nosso, distante da presença dos adultos. Muito frequentemente as crianças constroem suas próprias “tocas” dentro da casa em que moram: uma caixa de papelão, um canto do guarda-roupas ou uma dessas tantas casinhas que o mercado infantil se lançou a produzir. Pelo brincar, fazem o exercício do desejo de um espaço só para si.

Se somos seres tributários de nossos pais e da época que vivemos – por tudo que recebemos como herança simbólica – é pelo afastamento de seus desejos e de suas expectativas que constituímos um primeiro espaço de nossa identidade. Prescindir do olhar daqueles que nos criaram – o que na infância se dá aos poucos, por ensaios crescentes – é um movimento de extrema importância. Trata-se da primeira forma de ficar sossegado em seu próprio quarto, como nos propõe Pascal, evocando a infelicidade que há na impossibilidade de estar só.

Muito tem se falado sobre a solidão nos dias de hoje: escutamos na mídia, em consultórios, nos lugares mais variados… vem associada a um grande sofrimento psíquico que, muitas vezes, é potencializado pelas redes sociais, instagram e aplicativos de relacionamentos. Aprendemos a viver coletivamente: nos agrupamos nas grandes cidades, estamos acompanhados por toda a parte, e nem sempre ficamos confortáveis em lugares muito desertos. Precisamos comprovar, como forma de nos sentirmos amados e sabermos o nosso valor, o número de likes em nossos posts – como um espelho que reflete uma certa consistência de nós mesmos.

Michelle Perrot situa o quarto como a partícula elementar do espaço íntimo, como conquista histórica constituída através dos tempos. É garantia de liberdade pelo direito à privacidade e aos segredos, pela direito aos sonhos, ao amor e à intimidade. Nesse sentido é subversivo, permite a solidão – que nada mais é que a condição de viver com o outro não tanto como espelho de nós mesmos, mas como diferença radical, como espaço potente de alteridade e criação.

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Fernanda Pereira Breda, psicanalista, APPOA.


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