Luciano Mattuella
Já há algum tempo tem ganhado força a ideia de que o lugar privilegiado do cinema como arte nobre tem sido ocupado pelas séries de televisão. Seriados como Breaking Bad, Mad Men, House of Cards e Game of Thrones alçaram o formato a outro nível, seja pela qualidade do roteiro ou mesmo pelos gastos com a produção de cenários e figurino. A recém-chegada Handmaid’s Tale (“O conto da Aia”, em uma tradução que soa um pouco estranha) eleva ainda mais este patamar. Distribuída pelo serviço de streaming americano Hulu, a produção conta com dez episódios de uma hora estrelados por nomes como Elisabeth Moss (Mad Men), Yvonne Strahovski (Dexter), Alexis Biedel (Gilmore Girls) e Joseph Fiennes (American Horror Story).
Aliando-se a Black Mirror em sua potência de crítica do contemporâneo, Handmaid’s Tale – uma adaptação do romance de mesmo nome publicado em 1985 por Margaret Atwood, renomada escritora canadense de ficção científica -, é, no mínimo, um sinal de alerta.
A narrativa conta a história de Offred (mas esse não é seu verdadeiro nome), uma das chamadas handmaids: mulheres férteis em um mundo em que, por algum motivo – tomarei muito cuidado com os spoilers – poucas mulheres ainda podem engravidar. Estas mulheres vestem-se de vermelho e são estupradas sistematicamente durante o período fértil por um “comandante”, título dado aos homens que assumiram postos altos na nova república de Gilead (antigo Estados Unidos). O ritual, chamado de “Cerimônia”, ocorre segundo a seguinte descrição bíblica, do Gênesis: “Vendo Raquel que não dava filhos a Jacó, teve inveja de sua irmã, e disse a Jacó: ‘Dá-me filhos, se não morro’. (…) E ela disse: Eis aqui minha serva Bila; coabita com ela, para que dê à luz sobre meus joelhos, e eu assim receba filhos por ela”. A aia é estuprada pelo comandante enquanto está deitada entre os joelhos da esposa infértil. Assustador: o desejo cooptado por uma maquinal celebração da violência.
Além das handmaids, existem também as Marthas, mulheres mais velhas, também inférteis, que tomam conta dos afazeres domésticos. Há ainda as Jezebel, que não se adaptaram ao “novo sistema” e às quais foi atribuído outro papel na sociedade (como eu disse, não darei spoilers).
A sistema penal de Gilead é baseado não em uma constituição, mas na própria lei bíblica. Mas não os ensinamentos bíblicos como parábolas a serem interpretadas e transmitidas como conselhos ou provérbios: trata-se aqui da lei divina ao pé da letra. A Palavra em sentido unívoco, sem o demasiado humano respiro da interpretação. Uma sociedade moralizada por dogmas divinos sustentados pelo discurso utilitário do “fazer o bem ao máximo de pessoas” – a Palavra divina encontrando a sistematicidade do discurso científico. Em Gilead sempre existem estatísticas, evidências e números que comprovam a eficácia desta nova Lei (“Reduzimos em 78% a emissão de carbono na atmosfera”). Este cenário parece realmente muito estranho ao leitor?
Handmaid’s Tale ilustra aquilo que a ficção científica especulativa faz de melhor: lançar um olhar agudo sobre sintomas crônicos de uma época, exacerbando seus malefícios a longo prazo de modo a atentar para a urgência da busca de uma solução. O pior cenário é apresentado não como uma forma de catastrofismo, mas sim ao estilo de um convite à responsabilidade. A ficção surge como paradigma do trato com a realidade – legado freudiano, aliás, que fez de sua talking cure uma terapêutica para o sofrimento humano.
Assim, assistir Handmaid’s Tale é um exercício de controle da indignação. Cada cena faz o espectador afundar cada vez mais não só na história do seriado, mas também no contexto em que estamos vivendo agora, nesta nossa estranha época em que instrumentalizamos o mal como uma ferramenta do progresso e em que domesticamos a violência sob a forma de “austeridade necessária”.
Impossível terminar de ver mesmo o primeiro episódio sem que reste um gosto amargo na boca, uma inquietação muito íntima – e uma tremenda necessidade de falar sobre o seriado, de encontrar cúmplices dessa tragédia anunciada. Handmaid’s Tale vira o espectador do avesso, expondo-o como testemunha de um discurso hipócrita que hoje em dia não grita muito alto, mas sussurra de forma insidiosa.
Handmaid’s Tale nos lembra que talvez o mundo irá mesmo acabar, como nos diz T.S. Elliot, não com um estrondo, mas com um suspiro.
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Luciano Mattuella, psicanalista, membro da APPOA.