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21 de fevereiro de 2020
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12:02

Notas esparsas para pensar o futuro…

Por
Sul 21
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Notas esparsas para pensar o futuro…
Notas esparsas para pensar o futuro…
Foto: “Democracia em Vertigem”/Divulgação

Céli Pinto (*)

Há perguntas existenciais que são amplas o suficiente para dar guarida a reflexões que vão de revoluções na vida pessoal a revoluções políticas. Quando temos culpa de algum acontecimento? Onde temos responsabilidade? Quando acertamos? Onde erramos? De que forma poderíamos ter feito diferente por decisão nossa? As condições que nos foram dadas só permitiam o caminho que tomamos? Que condições possibilitaram êxito, quais determinaram fracassos?

Responder a todas estas perguntas, principalmente quando tratamos de entender quadros políticos, não é tarefa fácil, mas essencial por duas razões principais. Primeiro, porque temos que nos entender se quisermos seguir em frente; segundo, porque temos que entender o que fizemos para dar certo, ou deixamos de fazer para dar errado. Também é fundamental entender de que condições e limitações dispúnhamos à época e que conhecimentos temos hoje.

Estas são questões de resposta necessária para nos posicionarmos como democratas, progressistas de esquerda, nós que perdemos as eleições presidenciais, nós que enfrentamos grande dificuldade para nos rearticular, que perdemos o contato com eleitores e eleitoras, nós que não temos mais discurso capaz de interpelar os mais pobres, os mais perseguidos, os marginalizados por uma economia neoliberal e pelo abandono completo por parte de um governo à deriva.

Não adianta fazermos papel de avestruz e negar a dificílima posição em que nos encontramos.

Tomemos o PT. O PT foi construído a partir de uma base forte de trabalhadores sindicalizados da indústria automobilística do ABCD paulista e se expandiu através de outros sindicatos, como o dos bancários e o dos funcionários públicos, com o apoio forte da igreja católica progressista, através das comunidades eclesiais de base, além de um grupo de intelectuais. Estas foram as condições de emergência ótimas que se apresentaram nos anos de 1980. Com o passar dos tempos, esta base se expandiu, tornou-se mais complexa, menos coesa, mas o partido foi vencedor e chegou à presidência da república por 4 vezes. Mas, o PT caminhou a passos rápidos para a centro-esquerda para assumir a presidência da república. A Carta aos Brasileiros, de 2002 , foi sua mais fiel tradução, bem como a política do “todos ganham” dos governos.

A chegada do PT ao poder e seus quatro mandatos também foram de profunda negociação com os mais fisiológicos partidos do Brasil, o PP e o PMDB, além de partidos de menor estirpe e até com legendas de aluguel, todos sedentos de cargos e propinas.

Poderia ter sido diferente? Tenho minhas dúvidas. Se o PT e a liderança de Lula não tivessem feito este tipo de política, teriam chegado ao poder? A virada ao centro foi uma escolha política a partir de um cenário muito particular. Não há dúvida de que os 16 anos de governo do PT mudaram o país de forma muito positiva: houve aumento de renda significativa da classe trabalhadora, uma expansão importante do ensino de nível superior, políticas sociais que chegaram até as camadas mais pobres da população, tirando o Brasil do mapa da fome e construindo espaços de participação popular. O funcionamento dos conselhos e a organização de conferências nacionais mobilizaram uma grande quantidade de pessoas no Brasil todo, resultando em importantes planos de ação e políticas públicas. O Brasil mudou sua posição na política internacional, tornou-se uma liderança nas relações sul-sul e nas relações sul-norte.

Mas estes 16 anos de governo cobraram um preço muito alto. Para governar, o PT precisou se adaptar à tradicional forma de governar o Brasil, na qual está inscrita uma pouco republicana relação entre o público e o privado, onde as elites dos dois lados têm grandes ganhos econômicos e políticos por meio de trocas de favores que envolvem atos ilícitos e corrupção.

O PT precisa enfrentar isto de frente. Não para fazer “mea-culpa”, ou para declarar ingenuamente que “se algum companheiro errou, tem de pagar”. O problema tem de ser visto de outra forma: o PT governou como sempre o Brasil foi governado; fez alianças com os setores mais comprometidos com a corrupção no Brasil desde a redemocratização e mesmo antes dela, e houve autoridades petistas envolvidas em atos de corrupção. Por outro lado, a partir do governo do PT a Polícia Federal e o Ministério Público tiveram independência para investigar (antes, nos governos FHC, o Procurador Geral da República era conhecido como o Engavetador Geral da República, porque as denúncias morriam nas gavetas de seu gabinete). Também é preciso ter presente que, examinando as famosas listas do Janot, [1] publicadas em seu polêmico livro, a maioria dos indiciados foram políticos do PP , do PMDB e de partidos menores. Havia políticos do PSDB e do PT, mas em número menor. Soma-se a isto o fato de a grande mídia nacional ter feito um papel decisivo para associar toda a corrupção do país ao PT e a Lula, acusado de ganhar um apartamento e um sitio, ambos nunca provados. É sintomático que os dois grandes corruptos, que estão cumprindo longas penas na prisão atualmente, sejam Eduardo Cunha e Sergio Cabral, ambos do PMDB.

O PT é responsável por este quadro, mas não é culpado da corrupção no Brasil, e isto faz toda a diferença. O PT governou o Brasil por 16 anos sem enfrentar a tradicional forma de governar o país, esta talvez seja sua grande culpa. A pergunta de difícil resposta é: teria sido possível governar de outra forma? Teria sido possível romper com as condições que possibilitaram o governo?

A resposta às questões acima não exime o PT de responsabilidade. É sobre isto que o PT tem de refletir para se renovar, para conseguir aproveitar toda a potencialidade política que representa, como grande partido que é.

Hoje vivemos uma grave crise política que ameaça o regime democrático em suas bases. O país está sofrendo um rebaixamento em todos os sentidos da palavra: político, moral , nos diretos humanos, nas políticas sociais, na relação entre os poderes, no âmbito internacional. O governo atual não se dá ao respeito, não respeita o povo brasileiro, nem a comunidade internacional. Também não é respeitado por ela.

Para tirar o país deste atoleiro, quem assumir depois deste desgoverno com uma proposta progressista, precisará começar quase do nada, como se estivéssemos em 1985. Entretanto, as condições são completamente distintas: a geração é outra, as relações de trabalho são outras, as crenças são outras, ainda que as formas de governar o Brasil pareçam ter uma perenidade surpreendente. Talvez agora sejam um pouco mais violentas, mais próximas do que o jornalista Roberto Salviano [2] descreve a respeito da corrupção italiana ou das gangues mexicanas.

Falar de uma grande aliança para enfrentar o descalabro político que vivemos parece a solução mais plausível neste momento, mas temos de ter claro que as “as formas de governar o Brasil” permanecem intactas. O PMDB e o PP estão apenas se aproveitando do descalabro do poder executivo para fortalecer seu poder no legislativo. Já o PSDB, está pensando em trazer estes dois partidos para o seu lado, em uma pseudojornada de recuperação democrática.

Se somos uma parcela da população progressista, se somos uma parcela da população que pensa um contrato social pós-capitalista, se somos uma parcela da população democrata no sentido da inclusão social, política e econômica, precisamos ter coragem de nos posicionar. Talvez seja a hora de pensarmos que vencer as eleições em 2022 a qualquer custo não é o mais importante. Não estou defendendo purismos, nem isolamentos, mas apontando a necessidade de juntar forças para pensar um novo projeto para o Brasil, uma nova forma de governar. Nela não pode haver lugar para partidos que apoiaram o governo Bolsonaro, nem para os que se omitiram ou que, na hora da dificuldade, cinicamente apoiaram o golpe contra a presidenta Dilma Rousssef.

Notas

[1] JANOT, Rodrigo. Nada Menos que tudo. São Paulo: Planeta, 2019.

[2] SAVIANO, Roberto. Gomorra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

SAVIANO, Roberto. ZeroZeroZero. São Paulo: Cia das Letras, 2014.

(*) Professora Titular do Departamento de História da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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