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18 de outubro de 2020
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19:15

O Brasil na fase anal

Por
Sul 21
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O Brasil na fase anal
O Brasil na fase anal
Em video, senador Chico Reis relembrou a amizade de 20 anos dos dois no Congresso Nacional. ‘É quase uma união estável’, brincou Bolsonaro. (Twitter/Reprodução)

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

A partir da eleição e posse de Bolsonaro – última etapa do golpe concebido em 2013 e desfechado três anos depois –, a sucessão de retrocessos impostos ao País foi notavelmente acelerada, com o prosseguimento e aprofundamento da agenda econômica neoliberal, conduzida pelo inefável Guedes, e a paulatina destruição das políticas sociais e culturais construídas nas últimas duas décadas, tarefa empreendida sob a batuta do bronco presidente e sua súcia. Neste quadro, o grotesco episódio da prisão de um senador, alvo de operação realizada pela polícia federal, ocultando dinheiro no ânus, contudo, mais que outro caso lamentável de corrupção – envolvendo governo eleito com a bandeira de acabar com tal prática –, é altamente revelador de nossa regressão como nação, a desafiar explicação psicanalítica, além de política.

É verdade que o atual titular da presidência da República, entre as inúmeras grosserias e impropriedades por ele praticadas em suas falas desde que a assumiu – e que tanto chocam o mundo dito civilizado, como agradam e excitam seu público cativo – em mais de uma ocasião pública dedicou-se a fazer referências escatológicas. Pode-se lembrar aqui, por exemplo, as tantas vezes em que, tentando se defender, ao seu modo canhestro, da acusação de homofóbico, declarou em alto e bom som que “…cada um faz o que quiser com o orifício rugoso que possui abaixo da região lombar…” (sic).

Nesta matéria, nada supera, entretanto, a famosa reunião ministerial ocorrida em 22 de abril passado – curiosamente, o “Dia do Descobrimento do Brasil” – vinda ao conhecimento geral, e causando estupefação generalizada, alguns dias depois, graças a uma determinação judicial. Não bastassem as várias aleivosias escatológicas lançadas pelo líder direitista aos seus novos inimigos – taxados de “bostas” (sic) e de “estrumes” (sic) – saiu-se ele ainda com a indignada, e inusitada afirmação, feita ao que parece para emular seus auxiliares a tomarem providências: “querem pegar minhas hemorróidas!” (sic).

Não é preciso maior conhecimento de psicologia social para identificar, nestas e em muitas outras recorrentes declarações do chefe de governo, e de seus filhos e seguidores, uma verdadeira fixação anal, componente ínsito e estrutural do discurso machista tão caro ao neofascismo – de que o bolsonarismo é uma das versões brasileiras atuais. Aliás, em seu clássico ensaio sobre “O fascismo eterno”, Umberto Eco enumera, dentre as características da “nebulosa” que o revelam, a misoginia e a homofobia, como manifestações das pulsões homossexuais mal resolvidas do macho guerreiro, em sua contínua exaltação da virilidade.

No que se refere aos aspectos propriamente políticos do fato escabroso da hora – a prisão do senador Chico Reis, de Roraima, o tal que ocultou entre as nádegas notas do já tão desvalorizado real –, chama a atenção, desde logo, a mal sucedida tentativa de “descolamento” do atual ocupante da curul presidencial. As redes sociais, território preferencial de sua atuação política, não precisaram mais que algumas horas para divulgar amplamente vídeos do boçal presidente abraçado ao parlamentar roraimense, com mútuas declarações de estima pessoal e proximidade política, ao longo de quase vinte anos – o que, inclusive, levou aquele a declarar que esta relação era “quase uma união estável” (sic).

A enxurrada de frases jocosas e trocadilhos infames, provocada pelo inusitado ocorrido, inundando as mídias, tradicionais e virtuais – ao lado de manifestações de indignação e vergonha, umas sentidas, outras hipócritas – parece ocultar seu sentido político menos evidente. Caberia então, a este respeito, levantar hipótese sobre os reais propósitos e alcance da tal operação, que além de chacotas e lições moralistas, causou e ainda causa visível constrangimento ao governo e seus apoiadores.

Deve-se partir da consideração de outro fato recente, de forte repercussão nos meios políticos, tendo o tosco presidente como protagonista – sua declaração de que ele teria “acabado com a lava-jato, pois em seu governo não há mais corrupção” (sic). Note-se que o vídeo que a veiculou dá conta de que se tratava de discurso proferido em solenidade com policiais federais – agentes e delegados – realizada há cerca de duas semanas. E, sobretudo isso, a frase de efeito foi proferida e seguida da tradicional pausa para o recebimento de palmas do auditório – palmas que não vieram. Prosseguindo, o orador imediatamente elogiou seu atual ministro da justiça, aproveitando para destacar que ele era de confiança, ao contrário do anterior, que não é preciso dizer aqui quem era. Mais uma vez a piada presidencial caiu no vazio do silêncio.

As afirmações de Bolsonaro, como não poderia deixar de ser, provocaram reações de desagrado – a destacar, as do ministro defenestrado, o ex-juiz que queria ser presidente, e dos veículos do todo-poderoso grupo midiático que patrocinou sua construção como herói da luta anticorrupção. Sabendo-se, então, do prestígio que o provinciano camicianera ainda desfruta junto a parcelas expressivas dos integrantes da polícia federal, não é de se desconsiderar que a prisão do senador nortista – e a divulgação devastadora das circunstâncias espantosas que a cercaram, com sua humilhação pública (que só não foi maior porque o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, em boa hora, diga-se, impediu a exposição sórdida dos detalhes escatológicos) – configure um revide do partido morista à jactância presidencial sobre o fim da chamada “operação lava-jato”.

De qualquer modo, a luta nada surda entre as duas facções igualmente deletérias do neofascismo brasileiro – divididas quanto à sua liderança, mas unificadas ambas na defesa e promoção do projeto autoritário e antinacional em curso – aponta para a necessidade, mais que isso, para a urgência da reação organizada dos setores democráticos e progressistas da sociedade civil, bem como das oposições partidárias, dentro e fora dos espaços formais de poder.

As eleições municipais que se avizinham são uma excelente oportunidade, e podem marcar o início dos movimentos tendentes a reverter a onda de retrocessos e regressões, de toda ordem, a que vem sendo submetida a sofrida cidadania deste País.

(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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