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2 de setembro de 2020
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21:27

Divórcio à direita, rearranjos do poder

Por
Sul 21
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Sergio Moro e Jair Bolsonaro – Foto: Marcos Corrêa/PR

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Análises de fatos sociais, feitas ao tempo de sua produção, trazem embutido o risco de serem afetadas pelo chamado calor dos acontecimentos – seja dando importância excessiva ao que, logo, se mostrará contingente; seja, ao contrário, desprezando fatores ou circunstâncias que depois se revelarão relevantes. Há, também, o conhecido efeito encobridor da floresta pela árvore, a valorização preferencial do episódio singular, em detrimento do contexto histórico que o circunscreve e dá sentido.

No caso brasileiro, em especial desde a precipitação inédita de crises ocorridas a partir de 2013 – das famosas “manifestações”, até a reeleição de Dilma; do processo de sua deposição, mediante a farsa do impedimento ilícito, ao governo de Temer; e deste, à eleição e posse de seu sucessor, fruto da inestimável atuação do lobby midiático-judicial empenhado na destruição do sistema político – os cuidados para não incorrer nestes vícios devem ser ainda maiores.

Tendo-se presentes tais cautelas, passados pouco mais de quatro meses daquele 22 de abril, “Dia do Descobrimento do Brasil”, por ironia da história – quando se realizou a fatídica reunião ministerial que, uma vez revelada, escancarou ao mundo o nível inacreditavelmente primitivo dos atuais governantes do País – pode-se refletir agora com mais segurança sobre a série de eventos ocorridos a partir de então.

A começar, pelo divórcio litigioso entre o lavajatismo e o bolsonarismo – as duas faces da mesma moeda, a do neofascismo tupiniquim – precipitado pela saída do governo, mais que anunciada, e talvez até tardia, do ex-juiz, e agora também ex-ministro, que quer ser presidente. A respeito do casamento então desfeito, nesta mesma coluna, em artigo anterior – depois de lembrar a particular conjunção de movimentos distintos, e até mesmo opostos, mas unificados neste propósito, que levaram ao golpe parlamentar de 2016 e, em seguida, à condenação, prisão e exclusão de Lula da eleição realizada dois anos depois – tratou-se de destacar a forma pela qual Bolsonaro terminou sendo o grande beneficiário da bem sucedida campanha de criminalização da política, operada desde o fôro federal de Curitiba, sob a batuta da grande mídia (“O juiz de garantias e a nova derrota de Moro”, Sul21, postado em 11.01.2020).

Ali foi feita, no entanto, a seguinte advertência: “…Importa notar, a propósito, que apesar de partilharem o mesmo campo ideológico, professando as mesmas tendências autoritárias e antidemocráticas e o mesmo horror ao “sistema” – ou seja, à política, à cultura e a tudo que não integre o projeto de extrema direita que representam – existiu sempre, desde o início do governo, uma tensão surda entre o presidente e seu auxiliar…” (idem, grifamos).

Isto se devia, evidentemente, e deve-se ainda, às pretensões de ambos – do ex-militar e do ex-magistrado – em disputar, como candidato das direitas, o cargo hoje titulado por aquele, nas eleições de 2022. O que importa, de qualquer modo, é salientar sempre que, malgrado os patrocinadores e apoiadores do ex-juiz camicia nera tentem disfarçá-lo ou negá-lo, não há diferença substantiva entre ele e o tosco personagem hoje sentado na curul presidencial – e, sobretudo, entre suas agendas políticas.

Com efeito, ambas consagram o punitivismo penal e o autoritarismo estatal, a pretexto do combate à criminalidade e à corrupção; bem como defendem a manutenção e aprofundamento do projeto de entrega do patrimônio público e das riquezas naturais às grandes empresas transnacionais, de destruição dos direitos e conquistas sociais, e de subserviência ao capital financeiro, de dentro e de fora do País. Destarte, em qualquer das suas versões, bolsonarista ou lavajatista, o neofascismo brasileiro constitui, ao lado do neoliberalismo perverso e anacrônico que destrói nossa economia, a marca trágica desta quadra triste da vida nacional.

A partir da demissão de Moro, desencadeou-se furiosa guerra nas ditas “redes sociais”, entre seus partidários e os do presidente da República – guerra que, de forma mais sutil, espalhou-se também às mídias tradicionais: de fato, enquanto a Globo, fiel à sua criatura curitibana, passou a fazer constantes ataques ao governo que ajudou a eleger, o grupo do bispo Edir Macedo, solidamente instalado no poder, manteve e aprofundou sua defesa. Acompanhado, como não poderia deixar de ser, por outros conglomerados de rádio e televisão, a começar pelo do sempiterno camelô, cujo lema é diametralmente contrário ao do anarquista espanhol da célebre anedota: “hay gobierno, soy a su favor…”.

Ademais, a ruptura com seu “conge” elevou o número e a intensidade das atitudes francamente autoritárias do primeiro mandatário: num crescendo semanal, quando não diário, de ameaça às instituições – especialmente, ao Supremo e ao Parlamento – o boçal personagem, e seus rebentos, não menos boçais, trataram de mobilizar constantemente sua grei, quer pelas redes virtuais, quer pelas declarações prestadas em aglomerações públicas – às quais o “mito” faz questão de se apresentar sem máscara e desrespeitando, ostensivamente, os cuidados devidos para evitar o contágio do coronavírus.

Os conflitos criados e estimulados constantemente pelo chefe do executivo, terminaram provocando a reação, tímida ao início, e depois mais efetiva, de parte dos responsáveis pelas instituições ameaçadas, em especial das lideranças do Congresso – Rodrigo Maia à frente – e também de alguns ministros do Supremo.

Neste particular, cabe lembrar que algumas decisões proferidas no STF, somadas às articulações da oposição visando ao impeachment e à subida de tom nas críticas de boa parte da chamada grande mídia ao comportamento antidemocrático de seu líder, fizeram com que, acesa a luz de alerta no governo, este desfechasse rápida e exitosa campanha de cooptação de parcela expressiva de parlamentares. De fato, mediante a concessão de cargos e até ministérios, o “centrão”, como é conhecido o conjunto de deputados e senadores fisiológicos, de vários partidos, pode garantir apoio parlamentar suficiente ao truculento governante – inclusive para neutralizar eventual iniciativa de seu impedimento.

A tensa situação então vivida, que apontava até mesmo para perigoso impasse institucional, teve importante reviravolta a partir de julho, devida em grande medida a dois fatos, aparentemente sem relação entre si – mas cuja conjugação alterou o rumo da crise que, sabe-se hoje, quase levou à tentativa de auto-golpe por parte de Bolsonaro. Primeiro, a prisão do famoso Queiroz, amigo e faz-tudo da família, na casa serrana do próprio advogado da trupe – este mesmo, outro personagem sinistro, até então desconhecido do grande público. A ordem de sua prisão preventiva, cabe recordar, decretada pela justiça fluminense a pedido de agentes do ministério público, decorre das investigações ali procedidas acerca do que se convencionou chamar de “escândalo das rachadinhas” – na verdade, várias práticas criminosas que incluem, desde a contratação fraudulenta de funcionários de gabinetes parlamentares, até o financiamento de atividades ilícitas, envolvendo os milicianos que desgraçam a vida das comunidades periféricas do estado do Rio de Janeiro.

Recolhido a estabelecimento do complexo prisional de Bangu, na capital carioca, e ali colocado à disposição das investigações – ainda foragida sua esposa – o antigo auxiliar transformou-se em verdadeiro “arquivo vivo”, pois possível e cogitada delação premiada certamente abalaria os alicerces da República. O que explica a imediata e visível transformação no comportamento do presidente – antes agressivo e descontrolado, agora quase silencioso, adotando posturas conciliatórias e até mesmo procurando os presidentes das duas Casas do Congresso, em busca do fortalecimento do diálogo.

Somada a esta nova fase “paz e amor” do brutamontes que nos governa, as sondagens de opinião pública identificaram o outro fator explicativo de sua súbita mudança: como resultado das transferências de renda aos setores mais pobres da população, atingidos pelo desemprego devido à pandemia – feitas, aliás, com visível má-vontade, mediante iniciativa tímida, sensivelmente ampliada no Parlamento – as avaliações de seu desempenho pessoal no governo melhoraram a ponto de indicá-lo como favorito para a eleição de 2022.

O quadro atual fica marcado, pois, aparentemente, pela conciliação entre os poderes e o devido encaminhamento institucional dos conflitos políticos, como seria de se esperar numa democracia. Tal equilíbrio é precário, no entanto, dada a permanente tensão provocada pelo tipo de atuação e de liderança exercidos por Bolsonaro. A este respeito, convém trazer a lume a lição precisa de Umberto Eco, no seu clássico ensaio “O Fascismo Eterno” – segundo a qual as manifestações contemporâneas e futuras desse fenômeno não repetirão as formas originais, surgidas nas décadas de 20 e 30 do século passado.

Com efeito, o ex-capitão não têm, como Mussolini e Hitler tiveram, um partido-exército – doutrinado e uniformizado, hierárquico e fanático, organização paramilitar tentacular, capaz de incorporar, na sua irresistível expansão, todas as instituições de estado e da sociedade civil, por dentro e por fora, de cima a baixo: as forças armadas e o sistema de justiça, as polícias e as empresas, as escolas e as famílias, os órgãos de governo e da cultura, a sociedade toda, enfim.

Diferente disso, a legião comandada pela figura grotesca hoje encarapitada no Planalto, é fluída e dispersa, na sua existência virtual. Por isso, o líder tem de permanentemente convocá-la, pelas ditas redes. Essa é sua força e sua fraqueza. E a razão pela qual – independentemente de outros fatores – o bolsonarismo necessita tensionar sempre as instituições, ameaçando-as de desfechar sobre elas o golpe desejado por seu “gado”.

Por tais motivos, o panorama político brasileiro deve continuar indefinido até o final do mandato presidencial. E, não bastassem os fatores de instabilidade citados, há que considerar que o provável agravamento da situação econômica e social, já degradada, que o País vive, aponta para sérios riscos de anomia, por um lado, e de outra parte, de descontrole sobre as tentações autoritárias do núcleo de poder instalado em Brasília.

Perigos estes, ao que parece, mais do que tolerados, aceitos e até mesmo “precificados” pelo mercado financeiro que tudo pode.

(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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