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1 de outubro de 2019
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18:25

Lula no país dos penalistas

Por
Sul 21
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Lula no país dos penalistas
Lula no país dos penalistas
Luiz Inácio Lula da Silva (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

O deslocamento do centro da disputa política para a arena judiciária, em nosso País, iniciou-se na década passada, durante o julgamento, pelo Supremo, da Ação Penal 470, caso batizado pela mídia oligopólica como “mensalão”; e teve seguimento até os dias presentes, graças às ações da chamada “força tarefa da operação lava jato” – cuja natureza ilegal e abusiva foi denunciada desde o começo, escancarando-se agora, após as revelações do site de notícias Intercept.

Uma das consequências mais curiosas deste fenômeno é a emergência de temas jurídico-penais, assim nos noticiários e comentários da imprensa, como nas ditas redes sociais e na conversação diária. Passaram a ser comuns, fora dos ambientes acadêmicos e forenses, falas sobre os “efeitos infringentes dos embargos declaratórios”; ou sobre o conceito de “domínio do fato”; ou ainda sobre a “(des)necessidade de atos determinados”, ou mesmo do “exercício da função pública” para a caracterização da corrupção passiva”. Isso, sem falar na demonstração documental da propriedade de bem imóvel “atribuído” ao réu, para configurar a vantagem ilícita neste delito – bem como nas intermináveis discussões sobre “prova” e “convicção”…

Alguém que, oriundo de fora do Brasil, atente para esse peculiar efeito da judicialização da política entre nós, poderá pensar que se trata de um avanço: afinal, uma cidadania que se preocupa com a temática penal – lato senso – revelaria apreço a questões essenciais para a democracia, como o são o estabelecimento de limites às funções e instituições repressivas do Estado. Mas não é disso, absolutamente, que se trata, já que o debate, nesta matéria, continua sendo conduzido, pelos órgãos de comunicação social, da mesma forma distorcida e viciada de sempre – expressa nas notícias costumeiras de que o “delegado decretou a prisão preventiva”, o “ministério público proferiu decisão” e o “juiz dará seu parecer”…

Pois agora, o tema palpitante é o pedido formulado pelos procuradores que atuam na famosa operação curitibana, no sentido de que seja deferida ao ex-Presidente Lula – de que sempre foram os algozes impiedosos, sob a batuta do magistrado que então oficiava na 3ª Vara Criminal Federal da capital paranaense – a progressão de regime a que já faria jus, na pena que cumpre pela primeira condenação que lhe foi imposta, a do infame caso do apartamento, que não é dele, e que teria recebido para praticar ato indeterminado, que não praticou, condenação proferida, segundo seu prolator, sem prova, mas com convicção… Evidentemente, a turma liderada por Dallagnol, o pastor dinheirista que manda mensagens a si mesmo, pretende com esta manobra canhestra sair do foco das espantosas conversas que Glenn Greenwald, e sua equipe revelam toda semana, bem como atenuar a crescente perda de credibilidade daí advinda.

Aqui interessa, no entanto, esmiuçar um pouco a nova discussão jurídica travada a respeito deste desastrado movimento – gerado por quem não tem legitimidade, nem processual nem política, para reivindicar direito tutelado exclusivamente pelo réu condenado, seu advogado constituído ou, ainda, pela defensoria pública, na falta deste. Ocorre que, como foi amplamente divulgado, tanto pelo próprio Lula, como por seu combativo advogado, ele não quer e não aceita a transferência de regime prisional que lhe está sendo proposta, pelos referidos procuradores federais, para a modalidade semi-aberta (prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica).

As razões do ex-Presidente são mais do que respeitáveis; ademais, são suas razões – e ele é lúcido o suficiente para tê-las e expô-las. E ninguém é melhor juiz de seu interesse do que ele, Lula; muito menos seus acusadores, estes a quem falece, como membros da instituição ministerial, atribuição legal para postular direito individual – ainda mais em se tratando, como é o caso, de contumazes violadores dos direitos civis, políticos e humanos do cidadão em causa, como comprovado com a exposição de suas conversas ignóbeis e repulsivas.

A propósito, em face de alegações feitas, certamente de boa-fé, por ilustres personalidades, algumas delas próximas ao líder injustamente recolhido ao cárcere em Curitiba, cabe recordar que a progressão de regime não é simples benefício legal – ou “benesse”, como dizem os acólitos do punitivismo penal: antes disso, e ao contrário, consiste em “direito subjetivo público” do cidadão condenado. Ou seja, trata-se de faculdade que a lei lhe reconhece – decorrente do princípio constitucional da “individualização da pena”, inscrito entre os “direitos individuais” no artigo 5º, XLVI da Carta da República – de postular e obter, mediante a demonstração do cumprimento dos requisitos legalmente previstos a tanto (cumprimento de parte da pena no regime anterior e mérito demonstrado pelo comportamento prisional), a transferência para a modalidade reclusiva imediatamente sucessiva, em estabelecimento adequado.

Há muito tempo, a doutrina e a jurisprudência nacionais superaram a polêmica, outrora existente a respeito, assentando que a progressão de regime, como meio de assegurar a individualização da pena, é direito do condenado, e não mera concessão do Estado. Portanto, o primeiro pressuposto para sua efetivação é a aceitação, pelo cidadão titular desta faculdade, das condições para a mudança de regime: isto está previsto, expressamente, para a passagem a modalidade menos rigorosa da reclusão ou da detenção, bem como para o livramento condicional (Lei de Execução Penal, artigo 112, caput e § 1º); ou ainda para a suspensão condicional da pena (Código Penal, artigo 79).

Em todos os casos ali mencionados, o artigo 112, § 1º, da LEP estabelece que “…decisão será sempre precedida de manifestação…do defensor…” (sic, grifamos). E ainda, no artigo seguinte o mesmo diploma legal prevê que o “ingresso do condenado no regime aberto supõe a aceitação de seu programa e das condições impostas pelo juiz…” (grifos nossos). Não por outra razão, aliás, que em todos estes casos será procedida a denominada “audiência admonitória”, cerimônia na qual, perante o juiz, são informadas ao condenado as condições da nova situação para o cumprimento da pena e colhida sua aceitação das mesmas – sob pena de não haver a progressão, ou livramento condicional ou o sursis.

Deve-se atentar, ademais, que no caso se trata de “execução provisória” da pena, adotada após a mudança, esdrúxula e casuística, pela intitulada Suprema Corte, da orientação até então tradicionalmente adotada, à luz do princípio constitucional da presunção de inocência, que vedava, com acerto, seu início antes do esgotamento dos recursos interpostos pelo réu. Portanto, a alteração da forma de execução de pena, ainda passível de modificação, como na hipótese, permitindo a saída do ex-Presidente das dependências às quais está hoje recolhido, na sede da Polícia Federal no Paraná (“sala de estado-maior”), para estabelecimento prisional semi-aberto – ou mesmo para sua residência, mas com tornozeleira eletrônica – constituiria medida claramente desfavorável a ele.

Assim, não resta dúvida quanto ao cabimento e procedência da pretensão de Luís Inácio Lula da Silva, no sentido de não aceitar a vexatória condição que lhe está sendo proposta por seus inimigos, com interesses tão escusos quanto evidentes. Mas a questão, sabe-se bem, antes de jurídica, é fundamentalmente política: esta, a natureza da acusação que lhe foi brandida, e da condenação que lhe foi infligida – sem qualquer prova válida e à base de inaceitável argumentação, partida de magistrado suspeito e prepotente. Por isso, sua avaliação também há de ser política e, em que pese, diga-se mais uma vez, os ponderáveis motivos em contrário alinhados por vários de seus adeptos e admiradores, há que se respeitar a recusa de Lula àquela oferta, e as também respeitáveis razões que invocou para tanto.

A este respeito, aliás, convém recordar que, enquanto não for absolvido nas despropositadas ações penais contra ele ajuizadas – ou não sejam anuladas as decisões ali prolatadas – recolhido na sede curitibana da Polícia Federal, o grande líder popular continuará mantendo, como seu refém, o chefe de seus carcereiros, o juiz-verdugo que o condenou.

(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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