Colunas>André Pereira
|
20 de novembro de 2016
|
12:33

Zoravia, irmão Cechin, e o avesso ao ócio do pijama

Por
Sul 21
[email protected]

Por André Pereira

Hoje, dia 17, é dia de ver brotar o sorriso límpido de Zoravia Bettiol, que comemora 81 anos.

Vou no Margs levar-lhe flores.

É uma homenagem singelíssima de um admirador, muito aquém da dimensão do seu merecimento, muito abaixo do patamar do seu talento superior.

Mas sei que seus amigos íntimos vão celebrar adequadamente, como ela tanto merece, o natalício ilustre.

Mais que uma artista reconhecida – que poderia desfrutar da glória e da fama em uma redoma sobre um muro glamoroso – Zoravia é um símbolo do exercício da cidadania consciente, esclarecida, politizada e ativa.

Zoravia não esconde de que lado está.

Sua mais recente exposição “Zoravia Bettiol, o lírico e o onírico” contém uma série de gravuras que chama-se “Brasil 2016” porque Zoravia engasgou-se com o nome do golpista da sugestão inicial de titulagem: “Fora, Temer”.

– Nem consigo pronunciar esta palavra…- diz, enquanto Gilberto Perin nos fotografa e ela se movimenta para encaminhar-se para ver a obra civil da casa com estúdio, que finaliza em Ipanema, antes de ir para uma reunião do comitê pró Museu das Águas e de dar uma passada no Margs, onde pode ser vista a exposição dia 11.

Ali tem obras em diversas modalidades: desenhos, pinturas, gravuras, arte têxtil, objetos, ornatos e joias, além de registros de performances. Entre os destaques, a série Sentar, sentir, ser, iniciada em 2005 e concluída em 2016. Surgida a partir da reflexão do grande tempo que permanecemos sentados, diariamente, a série exibe a própria artista em poses e situações engraçadas, realizando distintas ações que podem ser feitas enquanto estamos, justamente, sentados, tais como: comer, legislar, celebrar, fofocar, magicar… Solta no espaço, em meio à representação de elementos e adereços que identificam as atividades empreendidas, a artista desponta em composições de cores cítricas e ridentes, que articulam fotografia, desenho, pintura e colagem. Outro destaque está no conjunto completo de xilogravuras para a lenda A salamanca do Jarau, publicada por Simões Lopes Neto (1856–1916) em seu livro Lendas do Sul (1913). Zoravia ilustrou o texto no final dos anos 1950, produzindo 27 imagens que são expostas pela primeira vez em sua totalidade, acompanhadas por vários estudos preparatórios.

Tem até cartolas que ela produz para o Orgulho Louco do Alegrete que tem inspiração em Qorpo Santo com sua cartola soberba.

Aliás, nem sei se amanhã, dia 18, Zoravia não estará lá pela fronteira oeste na parada internacional que congrega os diferentes, os doidos varridos e os loucos de atar que se dedicam a eles.

Já nos anos 80, no pioneirismo da ecologia gaúcho, Zoravia participava sem medo:

– Certa vez, éramos pouco mais de meia dúzia fazendo um ato na rua.. .Mas com uma multidão de policiais e jornalistas a nossa volta.

Contra o cotidiano de velhotes de menos de 60 anos, funcionários públicos na maioria, suspirando pelo sonho de largar o trabalho que os infelicita para regalar-se vestindo pijama, o vigor da alma de Zoravia é um balsamo inigualável.

As coincidências da nossa existência tão curta às vezes são sarcásticas. E, por isto, sou forçado a misturar aqui, vida e morte.

Ontem, dia 16, morreu outro octogenário avesso à vida de ócio com que sonham as senhoras postadas nas folhas polpudas do erário.

Foi-se daqui o Antonio Cechin, irmão marista, nada carola, que foi preso pelo golpistas de anteontem e anos depois recebeu 30 mil reais de indenização que usou para construir um santuário na Ilha Grande dos Marinheiros, a mais pobre do Guaíba, onde organizou os catadores de lixo para retirar os dejetos da civilização do rio e exercitar a reciclagem como modo de vida. Em 1989, conseguiu montar o primeiro dos 18 galpões nas ilhas, reunindo seus profetas da paz.

Irmão Cechin também criou a Romaria das Águas, em protesto contra a proibição do uso de barcos na procissão de Navegantes que lhe parecia uma afronta católica à religiosidade popular que sincretizava Iemanjá. Mas a Romaria acabou extinta assim como seu sonho de ver Sepé Tiaraju, o dono primitivo desta terra, consagrado como símbolo maior do estado, em lugar de gaúchos de botas, bombachas e boleadeiras.

No último dia 8, Cechin andava pelos corredores da Assembleia Legislativa tentando pressionar as excelências a votar o projeto de lei nº 11 que tramita desde 2010, sob o desleixo parlamentar, que trata da destinação do lixo das repartições públicas do estado.

“As eminências sentaram em cima do PL por seis anos”, diz, cruelmente, o assessor técnico parlamentar que acompanha o assunto.

O PL, que o irmão Cechin ajudou a elaborar com o deputado Adão Villaverde, garante a obrigatoriedade do encaminhamento dos rejeitos às cooperativas e associações de catadores evitando a comercialização por atravessadores privados ou mancomunados em órgãos públicos.

Ninguém se deu conta que ele ainda insistia em uma última missão na defesa dos seus profetas da paz. Mas não viu a lei vigorar.

Zoravia segue impávida, intensa, lutando para ver, em vida, o Museu das Águas de Porto Alegre que rende belas retóricas e nada de concreto.

Tenho certeza que Zoravia não vai desistir jamais.

Feliz aniversário, doce guerreira da paz.

.oOo.

André Pereira é jornalista.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora