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30 de setembro de 2015
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11:00

Eu estou com medo

Por
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Eu estou com medo
Eu estou com medo

Por Adeli Sell

Olha que eu me criei (quase) no meio do mato. Só as jararacas me amedrontavam. Eis que elas ainda continuam me amedrontando; especialmente na vida política. Meu medo é real. Leio que juristas aceitaram brechas que cediam poder a Hitler, para depois fazer as atrocidades que fez. Foram mortos seis milhões de judeus, negros, ciganos, pessoas com deficiência, homossexuais. Lembro-me da leitura de “Por quem os sinos dobram”, do Hemingway, e me pergunto: como puderam pessoas tão valorosas como os republicanos espanhóis terem sido aniquilados e derrotados pelo General Franco?

Como pode um tosco como Stalin ter usado os escritos de Lenin para atacar não só Trotsky, mas todo o Comitê Central, morto a mando dele, aniquilando sonhos e transformando heróis presos nos gulags. Estou pensando e, como se me acordasse de um pesadelo, me surge na cara, na tela da TV,  legiões de deserdados sírios caminhando de um país a outro. Vêm negros trôpegos da África. Outros não chegam. Ficam no mar ou na praia como aquela cena insuportável de uma criança síria morta.

Não tolero ver aquele drama todo na tela. O sono bate. Deito. Acordo, num sobressalto, com  gritos, tiros, carros a “mais de cem” em plena rua do Centro de Porto Alegre. No dia seguinte, fico sabendo que houve mortes, incêndio, brigas nos inferninhos da Marechal e arruaças na rua.  Mas falar esta e outras verdades pode gerar processos. E aí que vem meu outro medo. Como disse-nos dias atrás nosso Professor de  Direito: “temo pelo Estado Democrático de Direito”.

Sim, ele tem razão, a aula era de Constitucionalismo e Direitos Fundamentais, Dignidade da Pessoa Humana. Novamente, me vem à cabeça a cena de um refugiado sendo chutado. Uma cinegrafista, vejam bem, uma cinegrafista passando uma rasteira numa pessoa em desespero. E assim caminha a Humanidade.

E aqui onde trabalho tem uma empresa de Recursos Humanos, onde há dias em que se formam filas de pessoas buscando seu direito ao trabalho, e ouço no elevador comentários raivosos contra “este governo” que deixa “este povo” pegar nossos empregos aqui. Era uma pessoa branca, empregada. “Esta gente” era haitiana. Soube que há preferência para contratá-los em hospitais, hotéis, restaurantes, por razões múltiplas, até porque falam mais do que uma língua, são prestimosos. Onde está a solidariedade? Onde estão os valores da Liberdade, da Solidariedade e da Fraternidade da Revolução Francesa?

Vejo aqui com medo multidões em igrejas nas quais o pastor passa o tempo todo pedindo grana. Choquei-me ao ler que um “Tumulto em Meca deixou 131 iranianos mortos”. Por que “tumulto”, por que “iranianos”. “E os outros”? Aí me amedronta mais a mídia que desinforma a cada manchete e a cada linha. Talvez o tema que mais me dá medo é a mídia irresponsável, além dos ataques ao Estado Democrático de Direito.

Claro que nem tudo está perdido neste caminhar, quando vejo que a “Fazenda bloqueia 180 milhões de reais do Neymar”. Toma, acha que pode ser malandro porque é famoso. Finalmente, caem os grandes também.  O grandão da Wolks pede as contas, porque escondeu as falcatruas, mas nenhuma ação foi proposta contra ele e a empresa pelo Ministro omisso da Justiça, nem pelo Ministério Público, barulhento em muitas coisas menores, mas silente diante desta barbaridade. Onde está a Lei? E estas empresas só falam em “compliance”, mas não seguem um código de conformidade com a lei e a ética.

Eu estou com medo do processo civilizatório arranhado, espezinhado, por todos os lados. Onde estão os comportamentos morais, as posturas éticas? O Direito não pode morrer. Eu estou com medo, mas vou tomar coragem de continuar reagindo como sempre fiz, seja do medo da jararaca da infância ou do ovo da serpente do mundo atual.

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Adeli Sell é acadêmico de Direito, escritor e consultor.


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