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24 de setembro de 2015
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11:00

Atropelados pela pressa e pela insensatez

Por
Sul 21
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Por Adeli Sell

As pessoas têm pressa. Atropelam idosos em filas de supermercado e bancos. A pressa é tanta que pegam o elevador para subir até o primeiro andar. A escada cansa. Mas vai “correr” na academia. Têm pressa no “whats” e no “face”, tanta que abreviam tudo. Esquecem que há diferença entre máquina e ser humano.

Têm pressa e por isso faz tudo ao mesmo tempo. Nada sai direito. É tudo “meia boca”. Têm  pressa a gurizada que ouve funk, estuda para a prova, curte o face, fala com a namorada no whats. O que estão fazendo mesmo? Saberão? Qual o objetivo desta gincana? Tem jovem que não sabe fazer uma omelete, porque não tem paciência para quebrar os ovos e mexê-los.  Comem salgadinhos e bolachas. Depois vão “correr” na academia. Não veem a vida passar.

Nesta modernidade líquida, onde tudo flui, onde nada fica, tudo se esvai, lê-se a manchete do jornal no iphone. Quem lê conteúdo? Todos têm opinião. Leram? Estudaram? Pensaram? Não, compartilham no face, sem ler o todo, vão por partes… Atacar é o esporte favorito, nas redes sociais, por sinal. Petralha contra coxinha, coxinha contra petralha.  Xingação! Ideias não há.  A polidez cedeu espaço à estupidez. Neste cenário, a tolerância perde espaço para habitar.

Em qual estação vamos parar? Lenin sabia que estava indo rumo à Estação Finlândia para fazer a Revolução Russa. Era inverno de 1917. Se soubesse que encontraria um Stálin na sua vida, certamente teria feito acordos mais sólidos com Trotsky antes. Os juristas alemães acharam legítima a legislação que cedia espaço da Constituição de Weimar para Hitler decidir por conta e risco; e sobraram 6 milhões de judeus mortos. Era de um lado o afã de chegar à sociedade sem classes e de outro à sociedade superior. Na pressa de decidir, de chegar, os cálculos foram mal feitos, e as vidas foram atropeladas pela pressa e a insensatez.

Mortes e mortes. Já era assim muito antes, num mundo com menos pressa. Nem o navio a vapor existia e o ritmo medieval ia comendo as almas das bruxas nas fogueiras dos preconceitos e da pressa de não deixar rastros de contaminação das mentes. Nas guerras do estado de natureza salta a voz de Hobbes para criar o Estado controlador, o Estado Absolutista de Leviatã, reeditado por Stálin quase 300 anos depois.

A revolução francesa trouxe a ideia de liberdade, da igualdade e da fraternidade. Veio o motor, os navios ficaram mais ágeis. A pressa era tal que Robespierre de cortador de cabeças teve a sua decepada também. Veio a luz. Veio o avião. Veio o telefone. Vieram as invenções e as novas possibilidades para o Homem.

“O mundo parecia caminhar para frente, em linha reta e sem limites. Tudo isso até que todos se dessem conta de que os demônios se fantasiavam de Imperadores. E tanta criatividade, tanta inovação, tanta beleza, não foram suficientes para impedir que 1,2 milhão de vítimas fossem empilhadas nas trincheiras, ao longo de cinco meses, na Batalha do Somme, a mais sanguinária de todas as matanças da Primeira Guerra Mundial”, como disse o Plinio Zalewski em artigo num jornal local.

Norberto Bobbio, no seu pequeno e importante livro “O problema da guerra e as vias da paz”, nos remete a um rico debate sobre os tipos de pacifismo. Leitura importante para os nossos dias de intolerância, preconceitos, guerras religiosas, matança, refugiados, etc. Ele lembra que “o mundo parecia caminhar para frente”, como disse o Zalewski, mas vieram outras guerras.

Depois das atrocidades das duas Primeiras Guerras Mundiais todos sonhavam que a Humanidade tinha aprendido a não cometer outras monstruosidades. E pensávamos que caminharíamos “para frente”, não foi assim, pelo contrário. Vivemos dias piores.

Não aprendeu a Humanidade. Rousseau errou ao achar que era a sociedade que corrompia, mas é o Homem quem corrompe a sociedade. Queria lembrar que tivemos a Guerra da Coréia em 1950, na cola do fim da II Guerra Mundial. E deu no que deu, neste governo maluquíssimo da dinastia “comunista” real de Kim Jong-um e Kim JOng-il; a guerra do Vietnã que durou 20 anos e levou à morte talvez 5 milhões de seres humanos; a União Soviética invadiu vários países do Leste; a Espanha, Portugal e Grécia continuaram vivendo sob ditaduras ferozes; a Guerra dos Seis Dias e os continuados conflitos entre judeus e palestinos;  Bósnia-Erzegoniva, Afeganistão, Guerra do Golfo, invasão do Iraque, querem mais matanças, mais sangue, mais terror, mais notas sobre Torres Gêmeas, Boko-Haram, milícias?

Temos mais matanças, além destas guerras, tivemos o tráfico de drogas na Colômbia, narrativa em evidência na atualidade, vide a série Narcos, veiculada pelo Netflix. Temos ainda muito disto nos morros do Rio, nas favelas de São Paulo, no Buraco Quente em Porto Alegre, temos os “guerreiros” do PCC, do CV, dos Bala na Cara, etc. Temos uma carnificina na pressa do trânsito a cada dia. Nas cadeias do País, temos o Inferno de Dante renovado.

As casualidades acontecendo enquanto redijo. Me cai na mão um texto do Silvio Meincke, teólogo, brasileiro, agora morando na Alemanha, fazendo os mesmos alertas do Plinio e ligado com as minhas preocupações. Quem sabe acharemos um ponto de convergência nesta modernidade líquida:

“Em lento processo de metamorfose, a crisálida transforma-se em borboleta. Quem perde a paciência e abre o casulo à força, acabará interrompendo o processo e matará a futura borboleta. Da mesma forma, o processo democrático não pode ser acelerado à força, com intervenções violentas ou com golpes pretensamente legais. (…) Estamos apenas engatinhando. Seria uma catástrofe interromper, novamente, o processo e botar a perder o caminho duramente trilhado até aqui. Além disso, a democracia é lenta e frágil. É LENTA porque o povo todo precisa entender seu significado. Duzentos milhões de brasileiros precisam acompanhar o processo de aprendizagem. É FRÁGIL, porque sua única arma é o argumento. Argumento com raciocínio, com fundamentação lógica, para que a maioria, baseada nos melhores argumentos, tome as decisões. É muito frágil, porque em cada esquina mora um BRUCUTU, brandindo o porrete, disposto a impor seus interesses à força, ou com algum golpe mesquinho, a resolver os conflitos aos berros, aos socos, com o manejo da prateada, a botinaços, de guaiaca com revólver dentro, pronto para derrubar, marcar com ferro em brasa, castrar, sedento para derrubar e transar com bota e espora. Ainda estamos engatinhando no processo democrático, mas já estão acontecendo muitas coisas boas. Vou citar apenas algumas: O processo democrático está revelando a corrupção, antes sempre ocultada; a ONU acaba de tirar o Brasil do mapa da fome; há pouco foi proibido financiar campanha eleitoral com dinheiro privado; 150.000 jovens negros estão estudando na universidade; jovens indígenas estão formando-se médicos, veterinários, enfermeiras, agrônomos …; 50.000.000 de pessoas, antes esquecidas, estão sendo atendidas por médicos; empregadas domésticas conquistaram suas garantias trabalhistas. Por que interromper este belo processo? Devemos participar do processo, sim, opinando, protestando, manifestando-nos, com pressão popular, mas com argumentos, com definições, com transparência e com raciocínio, com uma só arma: O argumento. Precisamos participar do processo em todos os níveis da convivência humana: Na escola, na empresa, no esporte, na sociedade recreativa, na Igreja, na administração pública. Seria uma catástrofe se interrompêssemos o processo, novamente, e jogássemos o Brasil, mais uma vez, para o passado.”

Falou e disse tudo.

E nós, na pressa, vendo o mundo e o Brasil de ponta a cabeça, meio corcunda, lendo mensagens, passando mensagens, deletando mensagens, xingando, ofendendo…  E, claro, tem aqueles que estão o tempo todo fazendo louvores a Deus, pastores, obreiros, entes não sei de onde, orações, etc o que também os impede de ver o mundo real. Tudo, de tudo, e ao mesmo tempo. O “homo digitalis” – outra coincidência – é um whats do ex-secretário da Agricultura, Cláudio Fioreze, falando exatamente disto, com uma gravura, na qual quase como um “Homo habilis” da Idade da Pedra, que não vê sua cidade sendo degradada no entorno, pior, não vê seu semelhante, o seu sujeito está na frente do computador. Só vê a luz da tela, só sente os dedos no teclado. E lá continua ele no seu mundo sem cheiros e odores.

Onde está o tempo de olhar olho no olho. Cara na cara. Cumprimentar o porteiro, dizer  ‘Bom dia´!?   Perguntar para a faxineira como vai a filha doente? Falar dos filhos nas creches e fora delas? De como vai o piá e a guria no colégio, saber da cunhada professora que recebeu 600 pilas no último dia do mês… Ops, aí dói, pensar sempre dói, dói muito.

E lá vemos como aquela gravura do primata ao homem atual – o Faber, o Sapiens e o Ludens num sentido agora inverso, de novo, de “erectus” para o curvado, primitivo, que não vê a beleza do céu de brigadeiro, mas o foco luminoso do iphone em pleno dia de primavera. Não vê a beleza da lua cheia porque está com a cabeça baixa respondendo alguma “mensagem”. Viram como nós vivemos de “mensagens”, mas será que está clara a interlocução, terá um emissor e um receptor de verdade, de carne e osso, ou fantasmas se comunicando por telepatia?

Tempos difíceis, obscuros, com pouca luz para ver os caminhos a trilhar. Mas tenho uma certeza de que o foco tem que ser um novo Iluminismo, um pensar mais calmo, sem querer editar as caminhadas de Sócrates pela Atenas grega, pelo menos sair à praça, ir ao Mercado Público, onde palpita a vida, onde tem cheiros, odores, tem almas vivas e não apenas almas penadas.

Ir ao boteco, ao café. Pegar o ônibus com um livro debaixo do braço e tentar ler nele se não estiver como lata de sardinha. Não vamos jamais desdenhar a máquina, não somos os ludistas que destruíram máquinas porque ela desempregava, mesmo que o seu destruidor fosse o escravo de 16 horas de trabalho na fábrica.

Não vamos deixar de comprar nosso telefone moderno ou o seu último modelo. Mas não seremos escravos dos seus programas. Falamos de quase tudo e de quase todos, mas nesta turbulência atual, resolvemos dar nosso grito. Poucos vão suportar ler da primeira a última linha deste texto, mas alguns vão ler e isto é o recomeço da reflexão.

.oOo.

Adeli Sell foi vereador por 16 anos de Porto Alegre, é acadêmico de Direito.


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