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20 de maio de 2019
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17:30

Simplificações paralisantes e verdades embrutecedoras (por Adão Villaverde)

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Sul 21
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Simplificações paralisantes e verdades embrutecedoras (por Adão Villaverde)
Simplificações paralisantes e verdades embrutecedoras (por Adão Villaverde)
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Adão Villaverde (*)

O momento político de nosso país, associado ao cenário mundial, exige uma necessária e obrigatória reflexão para além dos fatos ou mesmo dos fakes para que possamos analisar e compreender com mais fundamentação e maior rigor o que ocorre hoje.

Principalmente numa época que já é reconhecida como a das mudanças mais profundas da história da humanidade. Onde estão em curso transformações não apenas nas coisas materiais, mas sobretudo nos indivíduos e como eles vivem, trabalham, se relacionam em sociedade. E também como tudo isto afetam suas emoções, uma vez que está sendo alterada a vida tal qual nós a concebemos e nos habituamos a ela.

E qualquer tentativa de bloquear políticas que apoiem a educação, o conhecimento, a ciência, a tecnologia e a inovação poderão ser lidas ou interpretadas como respostas obscurantistas e regressivas no sentido de interditar os necessários avanços humanistas que sempre devem acompanhar os saltos científicos-técnicos a cada momento histórico de desenvolvimento das forças produtivas e culturais de uma sociedade.

Isto fica reforçado exatamente por estarmos vivendo um momento em que os valores intangíveis do conhecimento e da inteligência, que são os principais ativos desta nova onda chamada de “revolução 4.0”, ganham cada vez mais uma dimensão enorme, equivalendo exatamente àqueles nossos conhecidos e tangíveis que remontam à revolução industrial.

A história humana é repleta de momentos vividos em que as mulheres e homens consideraram fundamentais e decisivos para suas vidas, seja nas suas particularidades enquanto indivíduos, seja na pluralizada condição de partícipes em determinadas épocas.

Fazer um resgate disto nestes tempos de obsessões obscurantistas e histerias conservadoras, é quase como pretender estancar o fluxo da história, ou mesmo interromper a corrente uniforme do tempo, de modo a tentar servir de registro e testemunha da realização humana num sentido de evitar a barbárie. É uma espécie de alimento da memória ou um selo que enviamos à posteridade como correspondência de uma época para as gerações que nos seguirão.

Tentar fazer isto, é talvez mergulhar nas próprias raízes do tempo. E para isto porque não imaginar, por exemplo, a primeira aldeia reunida em torno de uma fogueira, para agradecer com danças e cantos àqueles entre os seus, que haviam produzido as rudimentares noções de um rudimentar conhecimento, a primitiva ciência, os primeiros passos de uma tecnologia e a inspiração inovativa de um futuro desconhecido, que já estavam por exemplo, na base dos primitivos instrumentos de agricultura ou caça.

E foram as luzes destas primordiais fogueiras que iluminaram a travessia do gênero humano da barbárie para a civilização. E se permitirem os leitores, pela pretensão ou ousadia, quero afirmar e reafirmar, que simbolicamente, o último dia 15 de maio em nosso país, quando nossas cidades e ruas foram tomadas por este grande movimento em defesa da educação, deve servir como um registro para a necessária atualização e resgate daquilo que Paulo Freire dizia quase “ad nauseam”, qual seja, “a educação não transforma o mundo, ela muda as pessoas, mas estas sim é que têm o poder de mudarem o mundo”.

Que tenham as palavras e os cânticos nas ruas do nosso último 15 de maio, o mesmo sentido das canções de outrora, porque estes professores e pesquisadores, nas suas mais diversas áreas do conhecimento, produziram e produzirão ainda trabalhos, que possuirão o mesmo sentido dos primitivos instrumentos de nossos ancestrais. Que tiveram papeis decisivos de nos conduzirem ao processo civilizatório e fizeram a humanidade impor limites à selvageria.

E nestes tempos, ao reafirmarem seus compromissos com a inteligência e o conhecimento, o movimento explicitou também que o processo civilizatório não está despregado da dimensão ética da história humana. Mas como não somos ingênuos, sabemos que esta não é congênita ao saber. Aliás, lembrem-se, que infelizmente, foi necessária a bomba de Hiroshima e a trágica perpetuação de suas sequelas sobre gerações e gerações, para que percebêssemos amargamente que a inteligência não contém naturalmente as possibilidades civilizatórias. Que ela despregada das dimensões éticas, também pode ser também produtora de barbáries.

Mas além desta compreensão, os resultados do investimento em educação que produz conhecimento e inteligência, traz uma outra dimensão, que pode ser até identificada similarmente com a metáfora da aldeia reunida em torno da fogueira.

Refiro-me à perspectiva crítica do saber, aquele aspecto de rebeldia e inconformismo diante de uma realidade que se pretende indiscutível, que se pretende portadora da última e da penúltima palavra. Que embora emudecida de formulações teóricas e esvaziada e desprovida muitas vezes de conceitos, diz saber tudo sobre tudo, e, o que é infinitamente mais perverso, sobre todos.

Mas nestes tempos que correm, ceder a esta realidade que esteriliza nossa capacidade crítica e conviver sem conflitos com ela, é chancelar o pensamento em curso no país e no mundo. É naturalizar ainda que não deliberadamente a regressão nas relações em sociedade ou mesmo em redes, como o necessário ato de respirar.

Por isso este grande movimento em defesa da educação, enseja esta questão fundamental, a de recapturar o caráter crítico do conhecimento no nosso tempo, sem ter medo até de voltar-se contra o espírito de sua própria época.

Mesmo que para isto seja necessário retomar o espírito de outas épocas, como por exemplo, o criticismo ao empirismo e ao racionalismo, que habitava o século XVIII, que se prolongou pelo século XIX. Ou mesmo a ironia com que o século XIX chegou ao seu final, tendo forças para fecundar o conhecimento humano por mais de um século, chegando aos anos 60 do “breve século XX’ como referiu Hobsbawm. Aquela década que disseram-nos que as utopias haviam findadas.

E ao proclamarem o fim delas, pavimentaram caminhos para narrativas presentes, que afiguram-se portanto como uma espécie de epitáfio redigido sobre a lápide da capacidade crítica do conhecimento e do saber. Estando portanto autorizadas as simplificações que paralisam a sociedade e o país, com sonhadoras promessas que não se concretizam e as verdades que embrutecem todas as relações em sociedade, inclusive penetrando e cindindo relações familiares.

Legitimando assim tempos que poderíamos chamar de convívio acrítico com uma determinada realidade, uma época de um tal moderno conformismo, onde muitos nem se indignam ou sequer reagem as barbaridades orais emitidas diuturnamente pelo comando do Ministério da Educação ou até mesmo ou mesmo pelo próprio chefe maior do Estado.

Mas estes tempos acríticos, não são novidades na história da humanidade. Aquela realidade acima de tudo e de todos, sempre esteve presente em cada momento da história. Na Idade Média, por exemplo, se abrigava na autoridade de Aristóteles, confundindo-se com o obscuro mito da religião e com o poder feudal.

Hoje esta realidade configura um aspecto importante de um fenômeno do nosso tempo, que atende pelo nome de ultra-neoliberalismo, que é um modelo tutelado de forma difusa e não menos mitológica, pela lógica da banca financeira, que captura o Estado e suas Políticas Públicas em todas suas dimensões e engendra a ideia da submissão subordinada e acriticamente consentida na sociedade.

E quando olhamos na volta a sociedade que nos rodeia, o que vemos? O reino acrítico das relações em sociedade, que não admite a ironia porque não podem permitir a capacidade crítica do conceito, aquele fundamental legado iluminista que chegou até nós e que produziu também as nossas utopias.

Na realidade a lógica da banca e seu séquito de sacerdotes, não pode mesmo admitir o conceito, pois ele implica sempre no processo da razão. E esta, deixa sempre uma sequela de lucidez, uma cicatriz crítica aberta no dorso, fosforescente e conformista, deste mundo tutelado em que vivemos.

Não podendo admitir o processo da razão e por decorrência o conceito, porque estes revelariam o próprio conteúdo de irracionalidade, de um mundo que não obstante aos avanços científico-técnicos e as profundas mudanças e transformações que referimos, caminha infelizmente também de forma acelerada para o embrutecimento e o obscurantismo, seja no modo de vida, seja nas relações econômicas, sociais e culturais.

Um mundo tutelado, é um mundo tão velho quanto aquele que outrora era capturado pelo imperialismo clássico.

Aliás, mundos que se produziram antes e se reproduzem ainda hoje mutuamente. Os exemplos disso são as grandes metrópoles mundiais e do nosso país, estes fenômenos humano urbanos por excelência, que estão engendradas neste mesmo movimento de captura do Estado pelo processo de financeirização, onde a produção que alavanca o crescimento, as questões sociais e as pessoas ficam totalmente colateralizadas.

Aliás não é outra coisa o que já revelaram as obras de alguns pensadores utópicos e iluministas, que com seus conteúdos e conceitos faziam a crítica irônica da realidade, enfrentando assim a irracionalidade espontânea que tem a pretensão de submeter as determinações e dimensões humanas da existência. E destas determinações de captura do Estado e das políticas Públicas versus o processo da razão e, a dinâmica de conflitos, entre a financeirização das relações e o conceito humanista, fica constituído assim, um instável equilíbrio.

Sendo portanto possível ler a história das sociedades modernas como a desta frágil estabilidade, de tensionamento entre a razão humana e a visão onde a financeirização é tudo, que neste singular momento que nos é dado viver.

Onde já observa-se nitidamente um enorme desequilíbrio, onde efetivou-se uma ruptura, pois os pratos da balança desceram no sentido da regressão e do obscurantismo, das simplificações paralisantes e das verdades que embrutecem e emburrecem, em detrimento da razão e das determinações, por excelência, humanas. Ou seja, o prato desceu no sentido de determinações desumanas que se confundem, se fundem e se identificam com uma lógica meramente tutelada pelos interesses da financeirização.

E num mundo assim, as utopias e os sonhos terminam confundidos com medíocres desejos de consumos e entretenimentos. Cuja consequência é um universo ausente de sonhos, privado da fugidia e essencial sensibilidade das quimeras. E isto brutaliza a vida cotidiana, nos fazendo muitas vezes indiferentes frente a selvagens espetáculos urbanos do nosso cotidiano.

Num mundo assim, não há nada a estranhar que palavras, por exemplo, como segurança ou estabilidade – associadas a um feroz ataque às Funções Públicas de Estado, como são o caso da educação e outras – possam adquirir um tom de edílicas promessas para todos aqueles em que a insegurança e a instabilidade, constituam apenas um outro nome para as formas com que vivem seu pertencimento a sociedade humana.

E a partir da ruptura deste equilíbrio instável que vimos anteriormente, do ponto de vista da ciência, da educação e da cultura de um povo, instaura-se infelizmente uma outra lógica, mesmo que inconscientemente, que opera na sociedade sobre seus fundamentos filosóficos e também sobre os seus procedimentos epistemológicos. E estes pavimentam caminho para o feroz particularismo que nos é imposto para vencer o desapiedado jogo do mundo da financeirização, que não permite nem o conhecimento autônomo e nem o saber critico, porque estes são bases de um projeto de uma Nação soberana e independente.

Assim alimentam relações pessoais e diárias da sociedade, buscando engendrar falsas narrativas que irão atingir a ciência, destruindo sua vocação universal, aumentando nossa dependência tecnológica e nos tirando do jogo de disputar os maiores ativos da era do conhecimento, que são o saber e a inteligência. Daí a beligerância toda contra o ensino e a educação, chegando as raias do culto a mediocridade, a práticas autoritárias e a iniciativas inquisitórias e até mesmo obscurantistas. Isto tudo deixa um estreito relativismo, incapaz de sustentar qualquer noção de universalidade da verdade e da razão, e por consequência, da ética.

Daí decorre provavelmente, toda a ferocidade para que nossa sociedade não recupere, pois, o caráter crítico do saber, porque isto poderia implicar em contrariar o espírito absoluto, hegemônico, determinante e exclusivo do nosso tempo. Levando-nos quem sabe a reencontrarmos o fundamental processo da razão contra o da irracionalidade.

Que estes tempos que subsistimos, de simplificações paralisantes e regressivas, de verdades embrutecedoras e de intolerâncias e obscurantismos, nos remetam necessariamente a resistirmos e a avançarmos na importância do conhecimento e da inteligência e seu legado para a sociedade. E de exercitarmos permanentemente o caráter crítico, onde eventuais diferenças não sejam vistas como problemas ou muitas vezes consentida na forma de uma pseudo- tolerância. Que tudo isto ceda lugar ao respeito às eventuais e sempre salutares divergências.

É uma obrigação e responsabilidade nos tempos atuais que possamos recriar novos símbolos, não apenas daquela pequena aldeia iluminada pelo incerto fogo inaugural da civilização, mas também de um mundo conectado pelas relações de lucidez, com maturidade e humanismo, capaz de exercitar relações profundamente colaborativas na sua essência, de modo a não permitir que nossos cérebros sejam expatriados.

Para que fixados aqui sejam promotores e irradiadores dos intercâmbios de conhecimentos, capazes de proporcionar a sociedade a promoção e o alinhamento com o fraternal comércio do saber, e enfim, instituir novamente a racionalidade, a inteligência, a generosidade, a colaboração e o humanismo como as moedas fundamentais de trocas do gênero humano.

(*) Professor, engenheiro, ex-Secretário de Estado RS e ex- Presidente da AL/RS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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