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18 de janeiro de 2016
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10:30

Montaigne: O ensaio como autorretrato (I)

Por
Sul 21
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Montaigne: O ensaio como autorretrato (I)
Montaigne: O ensaio como autorretrato (I)

Por Ronald Augusto

O que se pretende aqui é investigar e comentar que espécie de eu ou de voz narrativa atravessa os ensaios de Montaigne. De saída pode-se afirmar, por meio de uma leitura comparativa, que nos Ensaios não deparamos o mesmo tipo de eu (como mecanismo discursivo) que, por exemplo, serve de instrumento tanto a Descartes como a Agostinho para a consecução e apresentação de seus textos e problemas filosóficos. Sob uma aparente similaridade, isto é, a de que nesses casos temos filósofos escrevendo a partir da primeira pessoa do singular ou conferindo ao pronome pessoal um estatuto mais dramático no que toca às condições de possibilidade do conhecimento, enfim, sob essa virtual aproximação, cabe estabelecer algumas distinções. Distinções estas que, de resto, vão demarcar o que é irredutível a cada um desses percursos filosóficos.

Tendo em mente as considerações do poeta T. S. Eliot que no ensaio Las tres voces de la poesía analisa as possibilidades expressivas da poesia a partir da concepção de que o gênero admite três tipos de vozes, a saber, a voz lírica, a voz dramática, e a voz épica, me pergunto se não seria pertinente relacionar essas vozes, respectivamente, a Agostinho, a Descartes e, finalmente, a Montaigne? Antes, porém, é preciso acompanhar a maneira como Eliot descreve o comportamento de cada uma dessas três vozes nos processos expressivos e comunicativos da poesia.

A voz lírica representa o poeta que fala consigo mesmo ou com ninguém; ela tem a ver com o solilóquio, com o monólogo confessional. E é nesse sentido que se justifica a analogia da voz lírica com o eu (enquanto dispositivo narrativo) que põe em movimento as Confissões do africano. Com efeito, as excruciantes confissões de Agostinho testemunhadas por Deus, representam um humilde acerto de contas tanto da criatura consigo mesma, quanto com esse Ser inescrutável que apenas se presta a ouvir o relato de tudo e de todos desde o Seu silêncio eterno. Por essa razão também o clássico Confissões, tal como a voz lírica, tem como audiência ou confessor efetivo menos ninguém (Deus) do que o sujeito mesmo que faz a confissão.

A voz dramática representa o mecanismo utilizado pelo poeta com vistas à criação de um personagem que tem seu próprio discurso e que, portanto, tem a prerrogativa de afirmar coisas com as quais o poeta ele mesmo jamais se comprometeria. O poeta inventa uma máscara que pode ser afivelada, isto é, interpretada por quem quer que seja, pois, afinal de contas, ainda que o personagem tenha algo dele, isto não significa que ambos se confundam em todas as situações possíveis. Cada leitor de Descartes afivela essa persona que aqui se descreve debruçada sobre a escrivaninha, ali é ludibriada por um gênio maligno. A argumentação de Descartes exige que o leitor interprete esse papel virtual para que o desfecho da história lhe pareça verossímil e, portanto, crível. Em certa medida as Meditações cartesianas se constituem em um monólogo dramático de um personagem sem nome próprio, cujo objetivo é comprovar sua existência na perspectiva de alcançar com isso uma verdade metafísica necessária. E toda a tensão trágica dessa narrativa, desde os primeiros combates do herói com o engano e com o autoengano, passando pela negação do mundo exterior (pois às vezes o personagem se dá conta de que atravessa uma ficção cênica), até chegar ao desfecho (espécie de chave de ouro) em que esse eu se enuncia como algo que pensa ou algo existindo enquanto pensa; enfim, todo esse romance, que pode servir para desentediar (como disse Descartes ele próprio a propósito das Meditações), tem, de fato, relação com a voz dramática, pois o que subjaz à noção do trágico (a teatralidade) é um erro de conhecimento que se traduz em erro de linguagem – o vacilo de interpretação fundamentando uma afirmação que se faz a respeito de determinado estado de coisas.

Finalmente, a voz épica dá a ver o poeta se dirigindo ou entretendo um auditório, trata-se de um narrador que sabe mais ou menos bem com quem está falando. É uma voz notadamente pública que, por um lado, incita o interlocutor e, por outro, se deixa incitar graças às reações e réplicas de seu comparsa. A célebre imagem de Montaigne ocupado com o seu gato representa à maravilha essa interação entre a voz épica e sua recepção. A imagem é a seguinte: enquanto Montaigne está brincando com seu gato ele tem uma epifania e se pergunta: “afinal de contas, sou eu quem brinca com o gato ou é ele quem brinca comigo?”. Quem é o sujeito, quem é o objeto em tal situação? Como um pensador do renascimento, Montaigne pressupõe em sua aventura epistemológica a participação das coisas relativas ao precário, ao belo e, de resto, à hýbris – predicados constitutivos do homem –, no projeto vivencial e intelectual de seus Ensaios. Em seu estilo não há dissociação dramática entre o ego scriptor e o autor empírico . Conquanto Montaigne afirme no prólogo ao seu livro que este o foi escrito para si mesmo, é preciso frisar que, paradoxalmente, o título da nota diz mais ou menos o seguinte “do autor ao leitor” e, além do mais, já na primeira frase do prólogo lê-se: “Eis aqui, leitor, um livro de boa-fé.”. Ou seja, o autor se presta a um exercício retórico de dissimulação. Na verdade, desde o início, Montaigne se revela profundamente disposto à interlocução, ao debate votado à ação, e o leitor é convidado, tal como o gato da reiterada evocação, não só a recompor os jogos de pensamento do autor, mas também a jogar com ele desde a sua própria e razoável liberdade interpretativa. Pela via oposta a de certos textos trabalhados até o limite da presunção e nos quais ao leitor resta apenas repetir palavra a palavra o pensamento do autor, dando a impressão de que a leitura resulta em uma variedade de ventriloquismo, o estilo de Montaigne, ondulante e variegado, por seu turno, provoca o leitor a emergir da platitude da leitura na medida em que tal linguagem não lhe oferece respostas consumadas em relação aos problemas apresentados. O conhecimento do que quer que seja não será encontrado nos Ensaios, mas fora deles, na ação sobre o mundo ou nos intervalos (o olhar que se ergue das páginas do livro visando excogitar algo) a que o leitor tem de recorrer frente às equações entre irônicas e céticas (embora sempre congeniais ao vivido) de Montaigne.

Essa voz narrativa encarnada num eu que é forma em clave épica e também o mais transeunte e prosaico “homem humano” (Guimarães Rosa), voz plena de tons e referências, dá ao leitor a impressão enganosa de que o método de Montaigne é a fragmentação ou a dissolução estetizante de problemas filosóficos por meio de um exercício de estilo. Talvez sejamos induzidos a pensar dessa maneira devido à variedade dos temas de seus ensaios. Na verdade o que acontece é que a cada ensaio nos deparamos não com um novo Montaigne, nem com uma nova persona de Montaigne, mas tão somente com outra objeção ou com um novo movimento na tentativa de chegar mais longe na investigação da complexidade dos problemas. E mesmo que aceitássemos a suposição de que Montaigne tem grande inclinação à dispersão, poderíamos determinar um traço de coesão nesse aparente descentramento, a saber, sua filiação à tradição do pensamento cético em sentido amplo. Mas, de acordo com a interpretação de Celso Martins Azar Filho , o ceticismo montaigniano não é meramente reativo, no sentido em que talvez pudéssemos encerrá-lo na convicção segundo a qual sua meta seria alcançar a suspensão do juízo como panaceia filosofante, como se tal figuração alcançasse dar conta do estilo cético com o qual Montaigne tem pontos de contato. Celso Martins Azar Filho entende que nos Ensaios podemos reconhecer um chamado à pesquisa e à constante experimentação dos seus resultados. Trata-se de um texto em estado dubitativo positivo – provocador e disposto à investigação. Segundo o comentarista, devemos nos acercar (jogar o jogo) da filosofia montaigniana, porquanto seus ensaios (experimentos) exigem nossa ação e nosso engajamento de modo a que essa situação nos permita acompanhá-lo de perto, quase como num corpo a corpo entre contemplar e viver.

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Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas(2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e Empresto do Visitante (2013). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente nohttps://www.sul21.com.br/jornal/


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