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30 de agosto de 2016
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10:15

Dory — ou esquecer para lembrar

Por
Sul 21
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DoryPor Marieta Madeira1

Em julho passei férias no Rio de Janeiro. Escolhi me hospedar no mesmo bairro onde fiquei nas últimas vezes em que estive na cidade, porque me agrada revisitar um lugar, percorrer mesmas ruas, rever paisagens, repetir sabores, entrar em lojas e mercadinhos que se tornaram, ainda que temporariamente, conhecidos. Dessa vez, me chamou ainda mais a atenção o poder que esse tipo de reencontro tem, pois nesse retorno a um lugar conhecido há lembranças que vão ressurgindo, emergindo da memória, lembranças já consideradas esquecidas, quase inacessíveis na vida cotidiana. Elas precisam de uma ponte para nos fazer visita, e nosso deslocamento é, às vezes, essa ponte.

Naqueles dias no Rio assisti o recém-lançado “Procurando Dory”. O filme tem tudo a ver com o tema da memória, pois a peixinha Dory, que conhecemos em ¨Procurando Nemo” (2003) sofre de perda de memória recente, e por isso precisa ser toda hora lembrada sobre o que estava falando, para onde estava indo, quem estava procurando. Não é de se estranhar que ela tenha conquistado a simpatia de tantos adultos e crianças, pois é fácil se identificar com ela. Habituados à experiência cotidiana de esquecer, ao conhecer Dory concluímos rapidamente que nossa memória vai bem, obrigada.

Afinal, quantas vezes fazemos coisas e esquecemos imediatamente depois? Trancamos a porta? Desligamos o fogão? Como quando, no curto trajeto entre o quarto e a cozinha, nos esquecemos de por que fomos até ali? Outro dia eu estava em casa com uma amiga, e ela me pediu um remédio para dor de cabeça. Levantei para buscar remédio e água, e quando cheguei de volta na sala, tinha só o copo d’água na mão. O remédio… eu tinha tomado no caminho! Isso sem falar nas queixas – fundamentadas – dos filhos em relação ao que eles nos dizem e esquecemos em seguida. Ou dos pais em relação aos filhos, queixa igual.

O que nos acontece no dia-a-dia é que nem sempre estamos com a atenção voltada para aquilo que fazemos. Assim, trancamos a porta de casa sem perceber, para logo não lembrar se a trancamos – possivelmente sim, automaticamente, mas como estávamos com a cabeça sabe-se lá onde, ao tentar recuperar a informação, não conseguimos. Ela não está lá. Em momentos da vida de maior tensão e stress, quando nossa atenção é excessivamente exigida por problemas, isso fica ainda mais intenso. E penso também que, nos tempos atuais em que nos comunicamos de tantas maneiras, o tempo todo, a questão da falta (ou seria excesso?) de atenção também se agrava. Estamos tão conectados, e com tanta gente, tudoaomesmotempoagora – que muitas vezes a chave na porta ou a voz de alguém pertinho de nós passam despercebidas.

Talvez por isso tenha me comovido a ida ao Rio. Eu estava naquela cidade de que gosto tanto, me deixando tocar pelo simples fato de estar lá. Era lá que estava minha atenção, naquela experiência e no que ela despertava em mim. E para acentuar ainda mais as memórias, reencontrei uma amiga a quem não via havia 18 anos, e retomamos histórias do tempo em que convivemos que, embora tenha sido curto, nos deixou a memória de um carinho e cumplicidade importantes.

Dory acabou se tornando parte importante dessas férias recheadas de memórias. Pois se “Procurando Nemo” nos impressiona pelos esquecimentos de Dory, “Procurando Dory” nos conecta com o lembrar. Nesta aventura, Dory recorda-se de que tem uma família, e decide procurá-la. Mas como ela empreenderia essa façanha, com sua perda de memória? Ela vai justamente lembrar através de sensações, de imagens, de sons. Como Proust ao comer madeleines embebidas em chá, Dory experimenta sensações que a remetem ao seu passado distante, e através de pequenos indícios tem acesso a lembranças que nem ela mesma sabia que tinha. De lembrança em lembrança, por um caminho de conchas (como aquele de migalhas de pão em João e Maria), Dory reencontra sua casa e seus pais. E assim nos lembra – justo ela, que tem perda de memória – que nossas lembranças podem nos levar longe. Esse longe que às vezes é muito mais perto do que imaginamos, pois mora em nós.

.oOo.

1 Marieta Madeira é psicanalista, membro da APPOA.


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