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1 de dezembro de 2012
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21:34

Abordagens transversais, diálogos e divagações

Por
Sul 21
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Faz tempo que percebo na produção plástica local um certo preciosismo no fazer manual que ao mesmo tempo me surpreende e me questiona. Talvez a quase ausência do trabalho escravo no Estado, aliada à forte presença da imigração europeia, conduza a uma valoração do trabalho manual. Poderia também ser resíduo de uma tradição artesanal, no entanto, no Rio Grande do Sul não se tem um artesanato importante, como por exemplo, no Nordeste ou em Minas. Será talvez por isso que emerge o desejo de ativar este tipo de fazer? Mais dúvidas que respostas envolvem esta minha observação, que se reforça com duas exposições atualmente abertas para visitação. Ambas, apesar de aparentemente muito diferentes, impressionam pela qualidade e maestria de sua fatura.

A mostra de Eduardo Vieira da Cunha integra o projeto Percurso do Artista, uma iniciativa da Pró-Reitoria de Extensão da UFRGS, através do Departamento de Difusão Cultural (DDC), que ocorre desde 2009, com a realização de exposições de professores artistas da universidade. Convidado para participar do projeto, Vieira da Cunha trabalhou não com a ideia de uma retrospectiva, mas com uma proposta de estabelecer os fios condutores de seu pensamento, linkando os primeiros trabalhos realizados ainda com fotografia e desenho, nas décadas de 70 e 80, com o que está fazendo hoje. “A exposição começa com aquilo que eu escolhi para ser apresentado como um único trabalho: quatro fotografias preto e branco, quatro impressões a cores a partir de diapositivos e uma pintura, além de quatro desenhos a carvão. …Selecionei estas imagens para mostrar que as texturas de areia e os padrões de ritmo criados pelo vento nas fotos se repetem”, diz ele.

Chama atenção o poético texto “ À procura de uma sombra viajante”, de Eduardo Vieira da Cunha http://www.eduardo.vieiradacunha.nom.br/, no catálogo da sua mostra. A palavra e a imagem, no seu caso são dois rios que se cruzam, cujas águas se misturam, mas continuam cada rio em seu curso. Essas fundamentais formas da comunicação humana abrem portas de passagem entre os homens e funcionam bem nessa mostra em que o artista, de forma bastante didática, convida o espectador a ser seu companheiro de viagem, apresentando vestígios de sua trajetória pessoal criativa. Ao estabelecer analogias com o personagem de um viajante, ele propõe ao visitante percorrer paisagens insólitas, onde as sugestões surrealistas são evidentes.

Foto: Reprodução

O trabalho plástico de Vieira da Cunha engloba fundamentalmente pinturas em que apresenta o domínio da cor em uma construção formal bastante peculiar. Nesta exposição, ele oferece pistas de como foi construindo sua linguagem através de fotos e objetos que lhe serviram de referência: miniaturas, carrinhos, aviões e outros brinquedos minúsculos, além de móbiles. É como se esses objetos migrassem para as telas e se transformassem em inúmeras pequenas figuras coloridas que deslizam sobre as superfícies e se perdessem nos espaços das perspectivas. Os enquadramentos fotográficos em vistas aéreas sugerem certo realismo, logo problematizado pela fantasia das cores e pela dispersão das imagens no ar.

A organização da mostra segue diferentes caminhos: na parede do fundo da sala João Fahrion, uma montagem com telas de vários tamanhos lembra a disposição usada nos museus dos séculos XVIII e XIX. Segundo o artista, ele procura, assim, apresentar seu trabalho como uma fragmentação dos conceitos de viagem e de deslocamento produtivo – do litoral do Rio Grande do Sul a Nova York e Paris. Distribuídas nas diferentes salas, 13 telas grandes com pinturas de paisagem, realizadas especialmente para a exposição, representam sua produção atual. O conjunto das obras evidencia um desdobramento de imagens e uma coerência formal e conceitual que absorve e envolve o espectador.

Foto: Reprodução

Se as palavras e as imagens se cruzam, também as ciências exatas e a arte se tocam, como acontece na obra de Gisela Waetge, que se encontra em exposição no Museu do Trabalho. O texto do curador, Eduardo Veras, aponta as relações entre o preciso e o imprevisível na obra da artista, destacando a severidade matemática de seus processos e as nuances de suas escolhas, dos seus gestos e de suas interpretações. Waetge prova e comprova que o cálculo matemático mais complexo e o uso de régua, esquadro e gabaritos podem, em suas mãos, gerar poesia.

Foto: Reprodução

Essas pinturas e desenhos, feitos entre 2011 e 2012, tiveram suas medidas estabelecidas a partir de um quadrado de 36×36, trabalhados pela sobreposição das duas grades originadas a partir da divisão por 12 e da divisão por 9. Este processo gerou diferentes quadriculados e marcações de pontos. Suas “Instruções para um desenho base 12-base 9”, descritas no folder da mostra, parecem indicar que ela utiliza uma receita objetiva e racional que qualquer um pode seguir para obter um desenho igual, ou semelhante, ao seu. Será assim? Suspeitas ficam no ar. Pois o que se vê na exposição é um conjunto de formas geométricas que se repetem e se modificam em uma rica e sutil leveza plástica.

Nada pode ser percebido ao primeiro olhar ou na mecânica passagem dos olhos. O espectador precisa se deter atento nas imagens desta poética da exatidão, em que as forças se combinam e se equilibram em uma dinâmica estabilidade. São inúmeros desenhos sobre diferentes superfícies – papel e tela -, de variadas dimensão – a menor possui 36x36cm e a maior 180x180cm. As telas e os desenhos de médio porte estão nas paredes, os minúsculos quadradinhos de papel estão dispostos em uma vitrine de vidro. Em seu conjunto eles afirmam a máxima de que a repetição conduz à diferença, tudo se parece, mas nada é igual.

Foto: Reprodução

A sala principal recebeu pontos a cada 12cm, feitos no local com carimbo e têmpera, que se misturam aos pontos nas telas, criando um diálogo arquitetônico. Ao mesmo tempo em que integram os trabalhos entre si, eles dão a ver a meticulosidade e a obsessão desse fazer repetitivo que a artista desenvolve como linguagem pessoal. O cuidado com detalhes de significação na construção da expografia também se percebe na mostra de Vieira da Cunha, que pinta da cor da areia as paredes das salas para remeter à visualidade da praia, que ele considera um ponto de partida em suas viagens.

Lembrando o método de análise da crítica de arte Rosalind Kraus, não é a similaridade de formas que aproxima os trabalhos, mas sim as estruturas de pensamento que pontuam. Mais além do preciosismo de seu fazer, estes dois artistas, aparentemente tão díspares – Vieira da Cunha um colorista figurativo, Waetge uma monocromática abstrata –, podem ser abordados pelo viés das transversalidades que estabelecem entre diferentes campos do conhecimento. E, afinal, não é a transversalidade uma das principais característica do trabalho artístico?


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