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13 de setembro de 2012
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08:59

Setembro

Por
Sul 21
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O mês de setembro é marcado por duas datas que evocam um sentimento telúrico, os dias 7 da Independência e 20 da Revolução Farroupilha. Afinal, são eventos em que se comemoram as duas pátrias dos rio-grandenses. E o interessante é a enorme diferença de apelo popular de cada um desses dias. No dia 7, fora os membros das Forças Armadas e seus familiares, poucos mais participam dos desfiles e eventos festivos. Já em relação às comemorações alusivas à proclamação da República Rio-grandense, sua popularidade vem crescendo ano a ano desde a década dos 80. A coincidência com o final da ditadura é, a meu ver, nada casual.

A apatia com que são comemorados os aniversários da Independência é uma das tantas cicatrizes deixadas pela ditadura que oprimiu nosso país por longos 21 anos. Patriotismo, bandeiras e uniformes ficaram associados à truculência antidemocrática dos militares que governavam então, merecendo a mesma rejeição da maioria da população voltada contra outros ícones do regime autoritário. Como se a evocação dos versos com que Castro Alves denunciou a ignomínia de quem “a bandeira empresta pra cobrir tanta infâmia e cobardia”, tivesse se materializado no repúdio às manifestações nacionalistas e na indiferença com que são vistos os símbolos e datas nacionais. Não fosse pelas realizações de nossos esportistas em diversas modalidades que vão do automobilismo ao futebol, muito poucas vezes cantaríamos o hino com orgulho.

Bem diverso é o sentimento em relação à Semana Farroupilha. Toda uma mitologia de heroísmo e identidade coletiva vinculada aos costumes e tradições rurais desenvolvidas desde o século XVIII pela formação e expansão da economia pecuária no estado foi sendo reciclada e codificada pelos inúmeros centros de tradições e clubes gauchescos espalhados por todos os rincões e cantada na obra de inúmeros artistas populares. O regionalismo, hoje, assume a dimensão de uma religião cívica com um enorme cortejo de seguidores, inclusive com seus santos e mártires, que vão de Sepé e Languirú a Netto e os Lanceiros Negros. É interessante que a difusão desse movimento coincidiu com a redemocratização na segunda metade dos anos 80, de certa forma preenchendo um vazio provocado pela aversão aos símbolos nacionais usurpados pela ditadura.

Quando a democracia voltou, empurrada pelos movimentos de luta pela anistia, pela constituinte e pelas eleições diretas, um resgate ainda que tímido do patriotismo teve lugar, mas foi logo sufocado pelos acordos elitistas da transição “lenta e gradual” arquitetada pelos últimos ditadores em acordo com as elites políticas e as classes dominantes. Após inúmeras jornadas de luta e manifestação de rua, sempre embaladas pelo hino nacional, pelas cores verde e amarelo e por canções populares, uma série de derrotas desfez o ânimo patriótico de boa parte da população então mobilizada. A anistia veio restrita, as eleições diretas foram substituídas pelo conchavo do colégio eleitoral, a nova constituição foi elaborada por um congresso eleito sob as regras da ditadura, e quando se pode escolher um presidente pelo voto, o eleito acabou deposto por corrupção.

A frustração que essa série de reveses trouxe ao sentimento nacionalista recém-resgatado veio se combinar com a globalização, que então varria o mundo com sua promessa de fim dos Estados e das fronteiras. As classes médias, que haviam sido o maior contingente de apoiadores da luta cívica e democrática, aderiram deslumbradas ao novo credo liberal internacionalista. Talvez o sinal mais esclarecedor desse processo seja a virada política do PSDB, de sua origem de esquerda muito próxima ao PT para a direita neoliberal nos governos FHC.

A liberalização do comércio e abertura dos mercados, de fato, internacionalizou o consumo e a produção, prometendo trazer a prosperidade, supostamente sufocada por barreiras protecionistas. Os prazeres do consumo, abastecido com importações fartas para quem ainda tinha alguma renda, trouxeram a felicidade de um contingente importante da população. Entretanto, logo ficou clara a impossibilidade de, através daquela modalidade de inserção liberal no processo de globalização, a sociedade brasileira conseguir um caminho sustentável de retomada do desenvolvimento. As crises entre 1999 e 2002 interromperam a ilusão de prosperidade. E, mais ainda, o tsunami financeiro, iniciado em 2008 e ainda inconcluso, mostrou que mesmo os supostos beneficiários da mundialização haviam perdido sua fortuna.

A má sorte da globalização tem trazido de volta à política e à vida social o apelo de uma identidade própria relegada pela uniformização do internacionalismo neoliberal. Um retorno à terra natal, às etnias, a valores tradicionais ressurgiu com força, principalmente no mundo ocidental e no Islam. O mais intrigante é que seu apelo é mais conservador, ou mesmo reacionário, do que o próprio liberalismo reabilitado pela contrarrevolução dos anos 80. Surgiu como ódio racista sem máscara na Europa, como repressão cultural e de costumes nos países árabes, ou perseguição religiosa nos Estados Unidos.

Na América Latina, em geral, esse retorno às identidades originárias, ao localismo, vem tendo, diferentemente, um conteúdo progressista, especialmente quando impulsionado por organizações populares indígenas, como na região de Chiapas no México ou nos Andes dos quíchuas e aimarás. Com forte apelo telúrico, esse movimento tem a consciência de que toda a região ficou do lado perdedor da globalização, empobrecida e endividada, e que o papel do capital internacional aqui foi antes de tudo, espoliador. Sua ascensão é parte da onda de governos à esquerda que retomou a consigna de desenvolvimento nacional, acrescentado de inclusão social, maior igualdade e integração regional.

O regionalismo gaúcho, com sua rigidez e seu revisionismo histórico fantasioso, infelizmente, está muitas vezes mais próximo do reacionarismo do primeiro caso do que do caráter emancipador dos demais movimentos de resgate da identidade latino-americana. Além de olhar para o que se passa entre nossos vizinhos, também seria valioso para nossos CTGs o mesmo aprendizado dos grupos islâmicos ortodoxos que se engajaram no processo de democratização política das sociedades árabes.

Luiz Augusto E. Faria é economista da FEE e Professor da UFRGS.


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