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22 de setembro de 2012
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07:55

A arte é fruto de uma excepcionalidade?

Por
Sul 21
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A arte contemporânea está colocando em crise esse valor que permeia o campo artístico desde sua origem no Renascimento, quando Giorgio Vasari apresentou a ideia do artista com gênio criador. Hoje, alguns setores defendem a permanência desse caráter excepcional da arte enquanto outros propugnam sua superação por modelos mais alinhados ao cotidiano e descomprometidos com grandes revelações. A 30ª Bienal de São Paulo toma partido nessa disputa.

Com uma larga e bem diversificada história, a Bienal de São Paulo colecionou sucessos e fracassos, fazendo com que a cada dois anos seja esperada com muitas dúvidas e expectativas. Sua trigésima edição foi inaugurada dia 7 de setembro, sob o título “iminência das poéticas”, com curadoria geral do venezuelano Luis Pérez-Oramas, e uma equipe formada por André Severo, Tobi Maier e Isabela Villanueva. Para o curador geral, “o destino da bienal era achar um lugar que deveria estar entre o mercado, as feiras de arte e o museu”. Seu destino “entre lugares” foi encontrado em uma mostra muito homogênea, sem a presença dos figurões tradicionalmente apresentados em museus nem dos destaques comerciais das galerias. Um conjunto que questiona com muita competência o ato artístico como excepcionalidade, assumindo uma participação mais inserida nas diferentes instâncias da sociedade, com práticas mais próximas à vida cotidiana.

Para montar o conjunto expositivo da 30ª Bienal, a curadoria realizou uma arqueologia recente, apresentando vários artistas do início do século, que apontam tendências e abordagens. Tem-se, por exemplo, August Sander (Alemanha, 1876/1964) com as coleções fotográficas de caráter antropológico, Alan Kaprow (EUA, 1927/2006) com as fotos e os vídeos de atos performáticos, Arthur Bispo do Rosário (Brasil,1909/89) com o colecionismo e as montagens, Robert Smithson (EUA, 1938/73) com a “arte da terra” ou Anna Oppermann (Alemanha, 1940/93) com os ambientes e instalações.

Anna Oppermann, Somehow she´s so different

A partir desta arqueologia foram elaboradas cartografias de sentidos, estabelecendo redes que interconectam artistas e obras, permitindo que cada um reforce as significações dos demais. A lógica organizacional da 30ª Bienal – por “constelações” de artistas cujos trabalhos dialogam e se tangenciam – pode ser percebida claramente ao longo da visita. Esses agrupamentos, se em alguns momentos podem parecer algo redundantes em suas proposições, no geral reforçam tendências e questionam a mítica modernista do artista original, deixando perceber como cada um deles se insere em conjuntos interativos. O Guia da Exposição explana essas leituras, mostrando doze possíveis agrupamentos, propostos pelo olhar da curadoria.

Os estudos fotográficos de Mark Morrisroe (1959/89), que constroem um painel da cultura punk nos EUA, se encontram com as fotos de Alair Gomes de garotos na praia, no Rio de Janeiro, acrescentado-lhes um viés voyeur erótico, ou com as de Alfredo Cortina, que fotografou sua mulher durante mais de 30 anos, em diferentes territórios, traçando uma história cultural. Todos eles trabalham com a repetição temática, criando séries que reforçam o caráter ao mesmo tempo documental e poético de suas imagens.

Alfredo Cortina – Petare puente Del Ferrocarril Central

 

Essa tendência repetitiva é bastante evidente, também, na instauração de coleções como processo criativo. Assim, a grande maioria dos participantes não se apresenta com as obras de grande porte, que caracterizaram edições anteriores da Bienal. Predominam conjuntos de ações e produções que, como um todo, estabelecem a dinâmica processual e a estética de cada artista. Os resultados deixam perceber um toque de obsessividade, em que a repetição faz a diferença, realizando na prática as propostas conceituais de Deleuze e Guatari. A repetição, a classificação, o ordenamento, o arquivismo têm presença garantida, sejam com conjuntos de imagens e objetos apropriados, como fazem Anna Oppermann, Hans-Peter Feldmann ou f.marquespenteado, seja na dinâmica de elaboração do trabalho como fazem Fréderic Bruly Bouabré, Sheila Hicks ou Nino Cais.

Frèderic Bruly Bouabré – Pleurant em qualite d´artiste ivorien son frere Alhiero Boetti italien

A mais forte característica desta Bienal é o caráter experimental e a dimensão investigativa das obras expostas. São tendências conceituais e processuais que se desdobram em inúmeras poéticas individuais. As fotos e os vídeos de atos performáticos documentam a experimentação com o próprio corpo, por parte de Bas Jan Ader e de Sigurdur Gudmundsson. As propostas de interação de Ricardo Basbaum, os experimentos do lugar, de Helio Fervenza e as experiências divertidas de PPPP (Produtos Peruanos para Pensar) também seguem nessa direção. São artistas que se perguntam sobre o mundo, sobre a vida e sobre arte; que não apontam respostas, mas fazem de suas reflexões práticas criativas instigantes.

PPP (Produtos Peruanos para Pensar) – Esa indescriptible sensasion marina

Assim como estão presentes produções que dialogam e questionam momentos da história da arte e da tradição cultural ocidental, como Runo Lagomarsino, Ian Hamilton Finlay ou Elaine Reichek, também encontram-se práticas que foram assumidas pelo meio artístico, apesar de terem sido concebidas totalmente à margem deste. Nesses casos estão Arthur Bispo do Rosário, um marco no conceito de organização do mundo por coleções, e Ferdinand Deligni (França, 1913-96), que atuou no interior da França com crianças altistas, desenvolvendo métodos de trabalho que envolviam a comunidade local. Estar dentro ou fora do sistema é uma condição relativa para uma mostra que se pretende “entre lugares”.

Embora na sua grande maioria não se apresentem artistas consagrados nos grandes circuitos internacionais, percebe-se a maturidade dos selecionados, quase todos com mais de 30 anos, e com um conjunto de obras consistente e coeso. Chama a atenção o grande número de obras apresentadas por cada artista, o que permite compreender seu pensamento e o desenvolvimento de suas pesquisas. Os textos explicativos e os dados nas fichas ao lado de cada trabalho funcionam muito bem, possibilitando uma boa compreensão do que está sendo visto. Os mediadores do núcleo educativo estão atuando todo o tempo, e podem ser consultados ainda o guia e o catálogo da exposição, além de áudio da Oi, disponível para uso via celular. Segundo a curadoria, “aspiramos à claridade e à funcionalidade, e tal como nossa equipe expográfica manteve eixos abertos que oferecem uma dimensão de transparência dentro do Pavilhão”. O público tem várias possibilidades de acesso ao universo da mostra, fazendo da visita uma rica experiência que tenta romper com o preconceito de uma arte contemporânea que ninguém entende.

Esta não será, possivelmente, uma bienal polêmica, com manchete nos jornais e debates públicos exacerbados, mas o visitante encontrará grandes atrativos visuais e espaço para reflexões. Além da grande mostra localizada no pavilhão do Ibirapuera, encontram-se outras obras esparramadas pela cidade, em locais como a Casa Modernista, a Casa do Bandeirante, a Capela do Morumbi, o Museu de Arte de São Paulo (MASP) o Museu da Arte Brasileira da FAAP, o Instituto Tomie Otake e ainda na Avenida Paulista e na Estação da Luz. Mas isso tudo fica para outro papo.


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