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16 de janeiro de 2018
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10:39

Projetor trocado por café, físico que opera o equipamento há 45 anos e outras histórias do Planetário

Por
Annie Castro
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Há 45 anos o projetor alemão Zeiss SpaceMaster encanta pessoas de toda as idades ao reproduzir as estrelas do céu de qualquer canto do mundo ou época. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Aos poucos, a sala escurece até ficar totalmente apagada. Todos silenciam. De repente, estrelas começam a aparecer no teto. Inúmeras, todas brilhando muito. Como se estivéssemos no campo, longe das luzes da cidade. O burburinho recomeça. Alguém deixa escapar um “uau”. Uma voz infantil pergunta “é de verdade?”. Até mesmo os adultos olham admirados para o céu noturno que se formou na sala de projeções do Planetário Professor José Baptista Pereira, mais conhecido como Planetário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ali, há 45 anos o projetor alemão Zeiss SpaceMaster encanta pessoas de toda as idades ao reproduzir as estrelas do céu de qualquer canto do mundo ou época.

Quem passa pelo número 2000 da Avenida Ipiranga, em Porto Alegre, não imagina as tantas histórias que aquele prédio guarda. O físico Ary Nienow, 67 anos, lembra de cada uma delas. Na década de 70, o Planetário da UFRGS e mais cinco planetários de outras cidades brasileiras – Santa Maria, Rio de Janeiro, Goiânia, Brasília, e João Pessoa – foram resultado de uma troca de café por aparelhagem científica entre o Brasil e a Alemanha Oriental. “Nessa troca vieram planetários, telescópios, microscópios e mais um monte de aparelhos que eram fabricados lá”, conta Ary. O SpaceMaster, aparelho ótico mecânico responsável pelas projeções nos planetários, é composto por três partes: um projetor central, que tem cerca de dois metros e meio, uma mesa de comando e armários elétricos. O projetor, que reproduz até oito mil estrelas, se comporta como se fosse a Terra, executando todos os movimentos principais do planeta, como rotação, translação e as estações do ano. Ele também possui um movimento que permite a mudança de latitude, ou seja, portando a latitude exata de qualquer cidade do mundo o aparelho mostra o céu daquele lugar. Com ele também é possível viajar no tempo e ver o céu do futuro ou do passado.

Após o escambo por café, o SpaceMaster foi então doado pelo Ministério da Educação e Cultura para a universidade, que formou uma parceria com a Prefeitura Municipal de Porto Alegre para a construção e instalação do prédio. Depois disso, a administração do planetário se tornou responsabilidade apenas da UFRGS. Foi durante a construção que Ary iniciou sua história com o mundo das estrelas. Na época, ainda universitário, cruzou por um aviso em um dos corredores da universidade. O cartaz informava que precisava-se de bolsistas que falassem alemão. Como Ary é de origem alemã, nascido e criado na serra, na cidade de Dois Irmãos, há cerca de 60 km da capital gaúcha, se inscreveu para a vaga, junto com um colega. Antes disso, ele nem imaginava o que era um planetário. A tarefa dos bolsistas era basicamente auxiliar na comunicação entre os três engenheiros responsáveis pela obra, que falavam apenas alemão e inglês, e os operários, que falavam apenas português. “De saída, éramos tradutores. O que eles quisessem nós pedíamos para os outros funcionários. Começamos a ficar junto deles, eles trabalhavam e iam nos ensinando também. Muitos problemas na parte técnica aconteceram logo depois da inauguração. Nós não sabíamos nada e fomos aprendendo no decorrer do tempo”, conta Ary. Por conta dessa experiência, ele começou a trabalhar na empresa de assistência técnica desses planetários, que havia se fixado em Porto Alegre. Dessa forma, o físico, além de trabalhar na parte técnica do Planetário da UFRGS, passou também a prestar serviços nos outros planetários pelo Brasil. Essa soma de experiências trabalhando na área e o fato de que o manual do SpaceMaster está todo em alemão fazem de Ary a única pessoa preparada para entender e consertar os eventuais problemas que aconteçam no aparelho.  

O físico Ary Nienow trabalha há 45 anos no Planetário da UFRGS. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ao longo desses 45 anos, Ary vivenciou muitas histórias no planetário. Antes mesmo da inauguração, que aconteceu no dia 11 de novembro de 1972, uma visita marcou a vida dele: os astronautas americanos James Lovell e Donald Slayton, tripulante da Apollo 13 e diretor de tripulação de voo da NASA, respectivamente, visitaram o Planetário da UFRGS. Com os olhos brilhando, Ary sorri ao lembrar também das filas enormes que se formavam na frente do prédio antes de cada exibição. “Começávamos às quatro horas da tarde e íamos até às oito e tanto da noite”, lembra. Na época, havia cerca de cinco sessões diárias, todos os dias da semana, inclusive à noite. Com o tempo, a novidade foi passando e a procura pelas exibições diminuindo. Atualmente, as projeções abertas ao público acontecem aos domingos, duas vezes por mês, com programação infantil, às 16h, e adulta, às 18h, e de terça à sexta-feira para escolas, nos turnos da manhã e da tarde. Existem cerca de 20 programas para exibição. Eles falam sobre astronomia, sistema solar, principais estrelas e principais constelações, cometas, astros. A linguagem das narrativas varia, de acordo com a faixa etária de cada público. Para as crianças, geralmente o enredo é mais leve, com personagens e uma historinha. Os programas para um público adulto possuem uma linguagem mais científica.

Uma das dificuldades que o Planetário encontra hoje em dia é a falta de pessoal, principalmente para criar novos programas. Segundo Ary, todos os programadores saíram, além da principal programadora que se aposentou ainda no ano passado. Antigamente, havia 13 funcionários no Planetário, atualmente o número caiu para seis. Algumas pessoas foram sendo demitidas ou se aposentando e não houve reposição, que ocorre por meio de concursos da UFRGS. A solução encontrada para cobrir a falta de novos programas é o intercâmbio entre outros planetários que possuem ainda o mesmo projetor, dessa forma a equipe não precisa fazer muitas adaptações. Dos seis planetários que receberam o SpaceMaster, somente quatro ainda utilizam o aparelho. O de Santa Maria e o do Rio de Janeiro passaram a utilizar um projetor digital. Ary afirma que o Planetário da UFRGS não pretende fazer o mesmo. “Todo mundo diz que céu igual ao do SpaceMaster não existe. O céu reproduzido por ele é quase perfeito, como se estivéssemos aqui fora em uma noite perfeita, sem nuvem, sem poluição, sem nada”, diz Ary. Segundo ele, os projetores digitais possuem problema de distorção da imagem, pois ainda não representam “com perfeição uma estrela”. Apesar de já existirem aparelhos ótico mecânicos mais modernos, fabricados pela mesma empresa alemã, o projetor utilizado em Porto Alegre ainda é o mesmo desde a inauguração. Ele é totalmente manual e não possui nada de computação. Por conta disso, outro problema que o Planetário enfrenta é a reposição de peças, que se torna cada vez mais difícil pois as lâmpadas são importadas e custam caro. Dessa forma, a equipe acaba comprando lâmpadas similares e adaptando a distância focal delas, para “dar uma boa imagem para as estrelas”

Além das exibições semanais, o Planetário também possui outras atividades. No saguão do prédio ocorrem exposições de todos os cursos da universidade. O Planetário também participa da Noite dos Museus, que acontece em Porto Alegre desde 2016. Em cada equinócio ou solstício, ou seja, na entrada de cada nova estação, a equipe realiza uma série de atrações no local. “No último equinócio colocamos tendas aqui no gramado. Teve danças e orquestras. Tivemos uma atividade multidisciplinar aqui”, conta Ary. Também já ocorreram concertos. Conforme a música ia sendo tocada, figuras iam aparecendo no teto da sala de projeções. O físico recorda com carinho a passagem do cometa Halley, em 1986, que foi quando, exceto pelo dia da inauguração, a casa esteve mais lotada. “Nós fizemos um programa especial sobre esse evento. Colocamos telescópios ali fora para as pessoas observarem a passagem”, lembra. Outra grande atração do Planetário é o Projeto Selene – que em latim significa lua. Uma vez por mês, ao anoitecer de domingo, na fase da lua crescente, a equipe coloca telescópios do lado externo do prédio para a população observar os principais planetas e estrelas que aparecem na época. Primeiro, há uma demonstração do céu na sala de projeção e, depois, todos visualizam o céu ao vivo do lado de fora. Há três anos o projeto não acontece, mas a previsão é de que ele volte a ocorrer a partir de março deste ano.

O SpaceMaster tem a capacidade de projetar até 8 mil estrelas. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Outra grande mas nem tão alegre memória que marcou o Planetário e o físico aconteceu em um sábado de 1994. Em uma manhã chuvosa de inverno, um guarda percebeu que estava acontecendo um incêndio no prédio. Anos antes, um holofote que ficava no meio do Planetário e que jorrava um faixo de luz em direção ao céu havia sido desativado. Porém, a fiação elétrica não foi desligada na época. Naquele dia, como o prédio enfrentava problemas de goteira, a umidade na cúpula da sala de projeções fez com que os fios entrassem em curto. Dessa forma, a cúpula começou a queimar de fora para dentro. Logo o guarda chamou os bombeiros e o fogo foi apagado. A sala de projeções foi prejudicada e a cúpula onde as estrelas são projetadas se tornou um grande buraco. O Planetário ficou fechado cerca de meio ano para o conserto e também para reformar a sala de projeção.

Planetário UFRGS
A entrada da sala de projeção possui uma imagem da Nebulosa de Órion, que visualmente parece com uma galáxia. Foto: Annie Castro

Na última quinta-feira (11), o Sul21 acompanhou uma sessão no planetário, onde até mesmo as portas mexem com a imaginação dos visitantes. A entrada da sala de projeção possui uma imagem da Nebulosa de Órion, que visualmente parece com uma galáxia. À espera da sessão daquela tarde, um menino aguardava cruzar pelo que chamou de “porta mágica”. Além dele, outras crianças, de diferentes idades e tamanhos, além dos adultos que as acompanhavam, esperavam ansiosas no saguão do Planetário. Logo, os 120 lugares da sala de projeção ficaram quase todos ocupados. A sessão daquele dia faz parte da programação especial de férias do Planetário da UFRGS, que conta com programas infantis nas terças e quintas-feiras do mês de janeiro, às 16h – o ingresso custa apenas um quilo de alimento não perecível, que será doado para alguma instituição filantrópica. Naquele dia, um colega de Ary iria exibir a programação, Pedro Sobragil, de 62 anos e que há 18 trabalha no local. Ele, Ary e outro colega operador se dividem na função.  

Ary perdeu a conta de quantos programas já passou, mas para ele é sempre uma experiência única. “Todo o equipamento é operado manualmente, então nenhuma sessão é igual à outra. A gravação é a mesma, mas a mesa de comando tem 150 botões, então o tempo de tu apertar o botão é diferente de uma sessão para outra. Uma hora tu abres mais um botão, aí um movimento sai mais rápido que o outro, coisas assim”, conta. Mesmo tantos anos depois, ele ainda se sente recompensado ao ver as crianças agradecendo após cada sessão. Para ele, é uma sensação incrível ver a emoção delas quando as estrelas começam a aparecer. Marcia Arsego, que levou o filho Murilo, de 5, e a sobrinha Isabella, de 9 anos, para ver a sessão especial de férias, se sentiu da mesma forma. “Escutei ela conversando durante o programa e comentando sobre coisas que aprendeu na aula. Falando sobre quais planetas existem e coisas sobre eles quando apareciam”, afirma. Para Isabella, foi muito importante poder ver tudo que aprendeu na escola. Outras crianças que estavam na sala também saíram empolgadas, olhando admiradas para as luzes coloridas que enfeitam o SpaceMaster. Quando a sessão acabou, um menino aplaudia em pé na cadeira, feliz por conseguir viajar pelo universo na tarde de uma quinta-feira de janeiro.

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

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