Cidades|z_Areazero
|
11 de dezembro de 2015
|
14:01

Professores e alunos revoltam-se contra decisão da Smed de fechar turmas do EJA em comunidades carentes

Por
Luís Gomes
[email protected]
EMEF João B. Goulart é uma das escolas que não terá turmas do EJA em 2016 por determinação da SMED | Foto: Reprodução
EMEF João B. Goulart é uma das escolas que não terá turmas do EJA em 2016 por determinação da SMED | Foto: Reprodução

Luís Eduardo Gomes

Alexandro Cardoso tinha 15 anos quando abandonou os estudos, ainda no Ensino Fundamental. Vinte anos depois, graças ao Ensino de Jovens e Adultos (EJA), deve finalmente concluir esta etapa no próximo dia 15 na escola Neusa G Brizola, localizada no loteamento Cavalhada, na zona sul de Porto Alegre. Assim como ele, há outras dezenas de pessoas matriculadas nesta modalidade de ensino na escola, mas elas terão de procurar outra instituição no ano que vem, uma vez que, por decisão da Secretaria Municipal de Educação (Smed), as turmas de EJA locais serão canceladas para 2016. O mesmo ocorrerá na Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) João Goulart, localizada no bairro Sarandi, na zona norte da capital.

Segundo a professora Maritza Martins, que dá aulas para alunos do EJA na Neusa Brizola, o corpo docente foi chamado para uma reunião no dia 10 de novembro em que foi comunicado pela direção que a Smed decidiu fechar as matrículas da modalidade de ensino para 2016. “Ocorreu sem nenhuma conversa prévia. A Smed nunca esteve na sala”, disse.

A posição oficial da Smed é que as escolas não oferecerão esta modalidade de ensino, em 2016, devido ao número reduzido de alunos frequentando ambas as escolas. “Frequentando, temos aproximadamente 20 alunos na EMEF Neusa G Brizola. Já na EMEF João Goulart o número de alunos frequentando é ainda menor. Para atender estes alunos temos um número significativo de professores, funcionários, guardas municipais em cada uma das instituições. Afinal, para mantermos o atendimento dos alunos é preciso contar com diferentes profissionais, além dos professores”, diz Simone Araujo Lovatto, coordenadora da Educação de Jovens e Adultos na Smed.

Professora Maritza em audiência na Câmara de Vereadores
Professora Maritza em audiência na Câmara de Vereadores | Foto: Guilherme Almeida/CMPA

Os professores das escolas, no entanto, salientam que a frequência irregular é uma situação normal dentro do EJA. “O EJA tem uma frequência oscilatória por se tratar de jovens e adultos que trabalham. Muitas vezes eles faltam às aulas, mas é uma realidade de todas as escolas do EJA”, diz a professora Maritza.

O catador de lixo Alexandro é um desses alunos de frequência irregular. Por fazer parte da articulação do Movimento Nacional dos Catadores, ele diz que não consegue estar presente na escola todos os dias. “Mas converso muito com os professores para que me passem as matérias e vou conseguindo fazer esse acompanhamento”, salienta.

A professora Maritza afirma que, em 2015, a escola teve um salto no número de matrículas. De 60, passaram a 90. Segundo ela, há em média entre 60 e 65 por noite nas três turmas do EJA oferecidas pela escola, o que, inclusive, estaria mais perto do ideal, por formar turmas de aproximadamente 20 pessoas. “Pode matricular até 30 alunos, mas não é ideal. O EJA foi pensado justamente para não ter turmas grandes. São pessoas que em algum momento abandonaram os estudos, então precisaram de atenção especial”, diz.

De acordo com a professora Luciane Winter, coordenadora do EJA da João Goulart, no caso de sua escola, a frequência durante este ano foi muito prejudicada em razão das enchentes que atingiram as comunidades atendidas pela escola – Vila Asa Branca, Vila Brasília e Vila União – e também pelos frequentes toques de recolher determinados pelos traficantes da região. “Nada disso foi levado em consideração, só foi levada em conta a questão de custos”, disse. Luciane também afirma que a decisão de fechar o EJA foi “arbitrária” e que em nenhum momento a Smed visitou a escola João Goulart durante o ano.

Ela diz que 76 alunos foram matriculados em turmas do EJA em sua escola em 2015. Desses, 25 estão concluindo o ensino fundamental ainda este ano, número semelhante ao de alunos que estão concluindo esta fase em turmas regulares durante o dia. Ela reclama que isso não foi levado em conta na tomada de decisão da Smed.

“Para eles na Smed são só números, mas eu sei que muitos que não fizeram a rematrícula, ou tiveram as casas destruídas e têm que ir para casa de parentes, ou estão no presídio, ou estão na casa do parentes, mas a gente sabe que eles vão voltar. São alunos que passaram na nossa escola quando pequenos e a gente consegue trazer de volta no EJA, afirma Luciane.

Além disso, segundo o vereador Professor Alex Fraga (PSOL), que conduziu uma audiência pública na Comissão de Defesa do Consumidor, Direitos Humanos e Segurança Urbana (Cedecondh) da Câmara de Vereadores sobre o tema no início do mês de dezembro, os professores relatam que a única vez que a Neusa Brizola recebeu a visita de representantes da Smed foi em um dia de recuperação da aula de um professor que paralisou suas atividades em razão da greve dos servidores do município, no primeiro semestre do ano, e que só oito alunos estavam em sala de aula na visita.

Comunidade do Neusa Brizola fez abraço simbólico em defesa do EJA em reunião no mês de novembro | Foto: Reprodução/Facebook
Comunidade do Neusa Brizola fez abraço simbólico em defesa do EJA em reunião no mês de novembro | Foto: Reprodução/Facebook

Sem apoio da direção

Nas últimas semanas, professores de ambas as escolas realizaram audiências e assembleias com as comunidades onde estão localizadas para debater o fim das turmas do EJA em 2016. Em ambos os casos, a comunidade e os professores expressaram o desejo de lutar pela permanência da modalidade para o próximo ano. A direção das escolas, porém, não teria o mesmo interesse.

Maritza explica que a Neusa é uma escola PP da rede municipal – em uma escala que leva em conta o número de alunos e vai até G – e que a própria direção não teria interesse na continuidade do EJA porque, em sua avaliação, a modalidade não traria nenhum benefício para a escola, apenas mais trabalho. “Alunos do EJA não contam no sistema para receber verba do governo. Se tem 100 alunos de dia e 100 de noite, os da noite não contam para receber recurso”, avalia.

“As direções, por conivência, resolveram apoiar a decisão da Smed para tirar uma parte da responsabilidade de suas costas”, diz o vereador Prof. Alex, acrescentando que, apesar de serem responsáveis pelos três turnos de atividades, as direções de escolas pequenas – como é o caso de ambas – usualmente não estão nos locais de noite porque isso implicaria em ir além dos turnos de 40 horas.

Procurada, a direção da escola Neusa Goulart disse que não iria se posicionar sobre o fechamento do EJA e que o assunto é tratado apenas pela Smed. A reportagem não conseguiu contato com a direção da escola João Goulart antes do fechamento da matéria.

Prof. Alex diz que o desejo da comunidade não está sendo atendido |
Prof. Alex diz que o desejo da comunidade não está sendo atendido | Foto: Guilherme Almeida/CMPA

O Prof. Alex critica o fato de o fechamento do EJA nas escolas ter sido uma decisão administrativa da Smed. “A escola não pertence ao secretario de educação, não pertence à direção, não pertence aos professores, pertence à comunidade. Se a comunidade vê a necessidade de se manter a escola, ela deve ser mantida”, afirma.

Luciane diz que os professores do EJA da João Goulart vêm tentando conseguir uma reunião com a secretária de Educação da cidade, Cleci Maria Jurach, mas ela estaria se recusando a falar com pessoas que não fossem da direção. “Eles são irredutíveis. A secretária é bem intransigente. Não recebe a gente. Tentamos marcar várias audiências com ela e ela diz que não tem tempo para nos receber e que não recebe professores e coordenadores, só diretores”, afirma. “Eu queria que ela pelo menos ouvisse a gente. Sem sequer ser ouvido e recebido, aí tu te sente ainda mais injustiçado”.

Escolas em meio à violência

Para o vereador, um dos principais problemas do fechamento das escolas é que elas estão localizadas em áreas dominadas pelo tráfico e que pode ser perigoso para os alunos estudarem em outras instituições localizadas em áreas dominadas por facções rivais a de suas localidades. Alex diz que, por ter crescido na zona sul, conhece bem a realidade de violência que envolve a Neusa Brizola.

“Me criei na Vila Nova, do lado da comunidade da Neusa Brizola. É uma região de um assentamento de casas populares, no qual foram alocadas quatro comunidades diferentes”, explica. “Desde a instalação daquela localidade, houve ali uma disputa muito forte, principalmente em relação ao tráfico. Atualmente, a situação se acalmou bastante, houve uma estabilização do quadro de violência, mas os traficantes da região têm rixa com os traficantes da Vila Monte Cristo. E a proposta da Smed é transferir justamente para a escola da Monte Cristo. Isso vai aumentar ainda mais o quadro de evasão de jovens e adultos das escolas. Entre terminar os estudos e se manter vivo, a maior parte das pessoas vai optar pela sobrevivência”.

A professora Maritza explica que, por estar pacificada, a comunidade do loteamento Cavalhada também se tornou um local seguro para receber alunos de outras comunidades. “Todo trabalho ali foi voltado para o combate à violência. Faz três anos que não tem toque de recolher. Tem alunos de outra comunidade que se sentem mais seguros, alunos da Cruzeiro, Monte Cristo, da Cohab”, diz. “A Smed relata que isso é um motivo para fechar, porque eles moram em outra comunidade e, para nós, isso [é motivo] para manter”.

Simone Lovatto diz que a Smed está levando em consideração a questão da violência e das disputas territoriais. “É justamente por isso que não estamos fazendo a transferência dos alunos para uma única escola. A proposta é respeitar o direito de escolha dos alunos considerando as diferentes variáveis”.

Simone Lovatto diz que a Smed levou a questão da violência em consideração em sua decisão
Simone Lovatto diz que a Smed levou a questão da violência em consideração em sua decisão | Foto: Guilherme Almeida/CMPA

A Smed afirma que há vagas suficientes para que os alunos concluam seus estudos nas EMEFs Vila Monte Cristo, Leocádia F Prestes, Anísio Teixeira e Escola Estadual Rafael Pinto Bandeira, no caso da escola Neusa Brizola, e na EMEB Liberato Salzado Vieira da Cunha e Escola Estadual Araújo Porto Alegre, no caso da João Goulart.

Luciane Winter acrescenta que o ensino para jovens e adultos na João Goulart se caracteriza por contar com alunos, em sua maioria, jovens de 15 a 25 anos em situação de risco. “Nossos alunos são pessoas que tiveram situação de delinquência, que não conseguem participar durante o dia, alunos com medidas sócio educativas que têm obrigação de estudar”, relata.

Ela diz que a alternativa oferecida pela Smed para os alunos da João Goulart que desejam concluir o EJA em 2016 ou para quem deseja ingressar na modalidade de ensino seria frequentar a escola Liberato, localizada na Vila Nazaré. “Só que os nossos alunos da Asa Branca não podem entrar na Vila Nazaré, porque têm uma situação de tráfico. Eles não podem entrar lá e já nos disseram: ‘Se entrar lá, a gente vai morrer. Então a gente para de estudar'”, afirma Winter.

Alex diz que o fechamento de escolas do EJA também pode ter graves impactos indiretos em comunidades. Segundo ele, em um estudo sobre a violência em Porto Alegre, o PSOL identificou que a maior parte dos jovens captados pelos crimes organizado são aqueles que evadiram a escola e ele afirma que um dos principais componentes que influenciam a decisão de um indivíduo largar os estudos é o grau de escolaridade familiar. “Crianças que evadem geralmente são filhas de responsáveis que também não concluíram seus estudos”, diz o vereador. “A maior parte dos internos da Fase são evadidos de escolas”.

Para onde ir

Para Luciane Winter, o fechamento do EJA pode representar o fechamento de uma oportunidade para esses jovens e adultos saírem da situação de risco. “O EJA é fundamental porque é a oportunidade de concluir o Ensino Fundamental, de sair do subemprego e das mãos do traficante. Ele mostra que existe outro lado, uma outra forma de viver na sociedade que não seja no subemprego ou a serviço do tráfico”. diz.

Alexandro ressalta que foi justamente a proximidade da escola de casa que o fez o estudar. Ele mora a menos de 100 metros da Neusa Goulart. “Essa proximidade fez com que eu pudesse voltar a estudar”.

Além disso, três de seus quatro filhos são alunos da escola. “Também facilita para que a gente possa interagir, tanto com os professores do dia como com os da noite”. Se o EJA já estivesse fechado, eles não poderiam estudar no mesmo lugar.

“A discussão que tem é que, se o EJA acabar saindo da comunidade, as pessoas que já têm dificuldade de acompanhar as aulas não conseguirão mais ir para outra escola. Principalmente porque outras escolas não ficam tão próximas. A maior parte das pessoas trabalha durante o dia, então precisa muitas vezes ir para casa, tomar banho. A escola estando perto de casa traz alguns confortos, como no meu caso, que passados 20 anos eu consegui retornar à escola novamente”, complementa Alexandro.

A professora Maritza acrescenta que fazer com que os alunos precisem estudar em outra comunidade deve inviabilizar a continuidade dos estudos de muitos também pelo ponto de vista financeiro. “Nós fizemos uma reunião no dia 11 de novembro na comunidade. Nesse momentos, os alunos foram unânimes em dizer que vão parar de estudar. Vão ter que gastar com passagem, com deslocamento, então preferem desistir”.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora