Cidades
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26 de novembro de 2016
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20:20

Catadores de sustento e de cidadania: recicladores se mobilizam pelo direito ao trabalho

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Sul 21
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Os jovens da comunidade também participam da separação de materiais recicláveis | Foto:Jonas Lunardon
Os jovens da comunidade também participam da separação de materiais recicláveis | Foto: Jonas Lunardon

Por Gabrielle de Paula

Da Agência Anú

Oito, dez, doze viagens por dia. De condomínio em condomínio, Paulo tem endereço certo para passar com seu carrinho. Assim como ele, centenas de chefes de família carregam o sustento nas próprias costas ou em cima de uma carroça, pelas ruas de Porto Alegre. Apesar do desgaste físico, quanto mais cheio o carrinho, maior é o sorriso, eles dizem. Afinal, o lixo reciclável que carregam é luxo, e a semana vai ser boa.

Para Scheila, da Dique, os catadores estão sendo “criminalizados” pela lei das carroças.
Para Scheila, da Dique, os catadores estão sendo “criminalizados” pela lei das carroças | Foto: Jonas Lunardon

“Estão nos chamando agora de ladrões do lixo”

Aos 47 anos, Paulo Collares é morador da Vila Sossego, zona leste da cidade. Na comunidade, cerca de 40 pessoas trabalham com a reciclagem, entre carrinheiros e carroceiros.

Nos últimos meses, o galpão do reciclador Vanderlei Pereira, tem sido ponto de encontro para as reuniões de mobilização dos catadores contra a Lei 10.531/2008, que proíbe a circulação de Veículos de Tração Animal (VTAs) e Veículos de Tração Humana (VTHs) nas áreas urbanas de Porto Alegre.

“Eles tinham que ter vergonha pelo que tão fazendo, tem gente aí que forma filho trabalhando com o lixo reciclável”, afirma Paulo. Para Vanderlei, o interesse da Prefeitura é no próprio lixo: “Eles querem privatizar o lixo e tão tirando emprego de quem já tem”, diz.

Na Vila Dique, zona norte, a indignação é a mesma. Lá, a maioria dos catadores é de carroceiros, que desde setembro estão impedidos de circular com carroças puxadas por cavalos. “A gente precisa. Eles proibiram, mas fazer o quê?”, questiona Ivone Machado, 68 anos.

Dona Ivone mora na Dique há 40 anos e sempre trabalhou separando material reciclável. Ela conta que os três filhos trabalham com a catação e têm se arriscado em sair com a carroça: “Eles não sabem ler, precisam trabalhar, têm que comer”, diz. Para Scheila Motta, moradora e membro da Associação de Moradores da Dique, a lei é um ato de “criminalização” dos trabalhadores: “Estão nos chamando agora de piratas, de ladrões do lixo”.

Para muitas famílias da Vila Dique a fonte de renda é o lixo | Foto: Jonas Lunardon
Para muitas famílias da Vila Dique a fonte de renda é o lixo | Foto: Jonas Lunardon

A Lei das Carroças

Criada em 2008 pelo então vereador e atual vice-prefeito, Sebastião Melo (PMDB), a lei buscava proibir apenas os VTAs, puxados por cavalos, sob o argumento da proteção animal. No entanto, a proposta foi modificada e a proibição de carrinhos também foi incluída, com o objetivo de melhorar o trânsito na cidade.

Na Vila Sossego, os caminhões costumam sair cheios. Fotos: Jonas Lunardon
Na Vila Sossego, os caminhões costumam sair cheios | Foto : Jonas Lunardon

Em 11 de setembro de 2016 a proibição entrou em vigor, mas dias antes, a Câmara de Vereadores de Porto Alegre aprovou um projeto de lei do vereador Marcelo Sgarbossa (PT), com uma emenda que ampliou o prazo para o uso dos carrinhos, em seis meses. Assim, somente as carroças com cavalos estão sendo apreendidas.

Segundo o catador Amadeu Abreu, os vizinhos da Dique e conhecidos da Vila Nazaré que tiveram os cavalos recolhidos, tiveram que conseguir em torno de R$700 para resgatar cada cavalo. De acordo com Scheila, essas pessoas passaram fome por cerca de dois meses: “Uma carroça sustenta cinco pessoas. Querem proteger os animais?! Deem ajuda pros carroceiros, com veterinários, assistência… E não tirando a nossa força de trabalho”, diz.

Para viabilizar a transposição dos condutores de VTAs e dos condutores de VTHs para outros mercados de trabalhos, a Prefeitura – por meio da Secretaria de Governança Local,- criou o programa Somos Todos Porto Alegre, com o objetivo de desenvolver políticas públicas de reparação.

Conforme a coordenadora do projeto, Denise Souza Costa, desde 2011 o programa vem atuando junto aos catadores e mais de 1.800 famílias foram abordadas pelo trabalho de Busca Ativa. Neste primeiro eixo, as equipes realizam o acompanhamento dos condutores de VTAs e VTHs, para construir novas alternativas de renda.

Dona Ivone é uma das moradoras mais antigas da Dique e sempre trabalhou com a reciclagem.
Dona Ivone é uma das moradoras mais antigas da Dique e sempre trabalhou com a reciclagem | Foto : Jonas Lunardon

Há também a oferta de cursos profissionalizantes, como recepção de hotéis, camareira, manicure e aulas de alfabetização. “A mudança não é uma coisa fácil, por isso tivemos a sensibilidade dessa aproximação com eles, para construir junto. O programa tem esse diferencial de fomento ao trabalho”, afirma Denise.

Ela explica que as diversas parcerias e o fundo social concedido pelo BNDS, possibilitaram a implantação dos cursos para esse público, já que segundo ela, o Pronatec teria um perfil “elitista”.

De acordo com o Somos Todos Porto Alegre, mais de mil trabalhadores realizaram a capacitação. Desses, 850 receberam certificação, pois atingiram 75% de frequência. Durante os três meses de aulas, o trabalhador recebe uma bolsa no valor de R$840. “Em torno de 800 pessoas já migraram para outras áreas do mercado de trabalho, mas como muitos se desligam do programa, esse número deve ser maior”, diz Denise.

A Fundação Solidariedade, umas das instituições contratadas para o trabalho de Busca Ativa informou que divulgará os próprios números no dia 30 de novembro deste ano, com as especificações de quem fez o curso e quem está no mercado de trabalho, por exemplo, de acordo com as pessoas que foram abordadas pela fundação.

 Filhos da dona Ivone e o carroceiro Vavá, afirmam que pretendem continuar na atividade. Foto: Jonas Lunardon
Filhos da dona Ivone e o carroceiro Vavá, afirmam que pretendem continuar na atividade | Foto: Jonas Lunardon

Cursos aquém da realidade

Mesmo que a coordenadora Denise considere o projeto um divisor de águas na política pública da cidade, os cursos ofertados pelo programa não têm sido suficientes. Para a defensora pública Patrícia Kettermann, as políticas compensatórias criadas pelo poder público são totalmente “divorciadas da realidade dessas pessoas”.

 Para o reciclador Vando, da Vila Sossego, a Prefeitura tem interesse em “privatizar” o lixo. Foto: Jonas Lunardon
Para o reciclador Vando, da Vila Sossego, a Prefeitura tem interesse em “privatizar” o lixo |
Foto: Jonas Lunardon

Ainda segundo Patrícia, a Defensoria Pública é procurada toda semana por pessoas que estão enfrentando dificuldades com a nova lei: “Primeiro, elas dizem que querem continuar em uma atividade que é lícita, e além disso, alegam não ter o perfil para essas atividades que estão sendo oferecidas”.

Ana Paula Fontoura tem 22 anos e é moradora da Vila Sossego. Desde criança, se acostumou a atuar como catadora com a mãe. Durante um período em que o galpão de reciclagem do marido Vanderlei esteve interditado, ela aceitou ingressar em um dos cursos de manicure: “Eu fui porque receberia os 840 reais e a gente estava passando necessidade. Mas depois não consegui emprego nenhum, nem aqui na vila quiseram fazer unha comigo”, comenta.

Já Scheila Motta frequentou as aulas de recepção de rede de hotelaria. “Tinha pessoas que não sabiam ler e o professor explicando no quadro o tal de curso, um absurdo. Depois que peguei o diploma, fui em um hotel e a moça explicou que um curso assim era de 4 anos e precisava falar inglês”, conta.

“Eles entendem como satisfatório o simples fato de a pessoa fazer um curso. E dali em diante não é mais problema. Mas, é sim responsabilidade do poder público municipal que tirou essas pessoas de uma ocupação lícita, sob a promessa de uma inserção no mercado de trabalho”, afirma a defensora Patrícia.

Apesar da resistência, a coordenadora do projeto argumenta que o Somos Todos Porto Alegre reestruturou as 19 Unidades de Triagem na cidade, e que o programa realiza a inclusão de trabalhadores nas UT’s: “Nosso escritório está sempre em contato com os assessores para saber se tem vagas nas unidades”, afirma.

Segundo a defensora Patrícia, em visita às unidades, foi possível  perceber o receio dos trabalhadores de voltar às ruas por “medo de ser preso”, além de queixas em relação à diminuição da renda”. No entanto, Denise afirma que a reestruturação das Unidades de Triagem representa um momento histórico na melhora da renda dos trabalhadores que ingressaram nas UT’s, além do fim da exploração por parte de quem compra materiais de catadores.

De acordo com o carrinheiro Paulo, em uma semana boa na rua o lucro é em torno de R$ 300. Já para Vanderlei, dono do galpão, o lucro é em torno de R$600 por semana. “A gente cata, vende, e o dinheiro tá na mão na hora”, diz o catador da Dique, Amadeu. “E eles [Prefeitura] vêm aqui querer fazer o cara mudar de função”, afirma Vanderlei.

Direito ao trabalho

Para a defensora Patrícia Kettermann, há um problema social silenciado em Porto Alegre. Ainda que a Prefeitura afirme não haver pressão sobre os trabalhadores, para a Defensoria há uma preocupação quanto à criminalização da atuação dos catadores.

Em agosto esse problema social ficou evidente, quando uma audiência pública convocada pela defensora teve de ser cancelada por falta de espaço, já que eram esperadas em torno de 100 pessoas e compareceram 600. “Só das ilhas, vieram três ônibus”, conta Patrícia.

Ana Paula fez o curso de manicure oferecido pelo Somos Todos Porto Alegre, mas não encontrou emprego na área. Foto: Jonas Lunardon
Ana Paula fez o curso de manicure oferecido pelo Somos Todos Porto Alegre, mas não encontrou emprego na área | Foto: Jonas Lunardon

A mobilização foi possível por meio da organização de um Fórum Independente de Catadores, no qual os trabalhadores têm se articulado para as ações junto à Defensoria.

Patrícia explica que o foco da Defensoria agora é discutir a inconstitucionalidade material da Lei das Carroças. Ou seja, a lei aprovada pela Câmara de Vereadores de Porto Alegre gera a criminalização de uma profissão prevista no Código Brasileiro, ferindo assim a dignidade da pessoa humana e o direito ao trabalho. “Eles também são agentes ambientais e a sociedade precisa atentar para esse detalhe”, diz Patrícia.

Mesmo com o fim do programa Somos Todos Porto Alegre previsto para o fim deste ano, a coordenadora Denise considera que o objetivo foi alcançado: “Eu não questiono a lei. Eu só coordeno um programa que cumpre a lei, que oferece alternativas para quem quer, que apresenta ações de educação ambiental… Isso é ser agente ambiental”, diz Denise.

A defensora Patrícia esclarece que a prioridade é tentar resolver a questão de forma extrajudicial, antes de um possível ajuizamento. Neste caso, a Defensoria Pública se propõe a ajustar as políticas que estão sendo insuficientes aos anseios da população que tem procurado a instituição.

Em busca de cidadania

Os catadores que consideram ter seu direito ao trabalho violado têm se organizado de maneira independente. Paulo, da Sossego, afirma que essa mobilização é uma questão de cidadania e tem procurado participar das reuniões do Fórum Independente de Catadores. A ideia é criar associações de catadores nas comunidades para fortalecer a atividade e barrar a Lei das Carroças.

O carrinheiro Paulo conta que tem lugares fixos para recolher o material reciclável. Foto: Jonas Lunardon
O carrinheiro Paulo conta que tem lugares fixos para recolher o material reciclável | Foto: Jonas Lunardon

Valdenir Macedo, o Vavá como é conhecido na Dique, conta que criou os quinze filhos trabalhando como carroceiro e  não cogita mudar de ramo. Vavá diz que a reciclagem, além de preservar o meio ambiente, também é uma oportunidade para os jovens da comunidade não se envolverem com drogas.

Scheila ainda comenta da boa relação dos catadores com a sociedade em geral: “As pessoas já conhecem o carroceiro e o carrinheiro, elas guardam os materiais pra gente, doam roupas, alimento, é quase uma relação familiar”, diz.

No entanto, ela acredita que a Lei das Carroças é bem vista pelos mais ricos: “A elite quer a modernização da cidade, mas tirando o trabalho, a violência aumenta”, reflete. “O que tão fazendo é uma violência contra a vida do pobre. Mas, o que vale a vida para os governos, não é?!”, completa Vavá.


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