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19 de julho de 2015
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17:06

Exposição de retratos em Porto Alegre revela papel forte da mulher negra na saúde pública

Por
Sul 21
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Série de retratos de trabalhadoras e usuárias negras do SUS é exposta em frente à Prefeitura de Porto Alegre | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Série de retratos de trabalhadoras e usuárias negras do SUS é exposta em frente à Prefeitura de Porto Alegre | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Fernanda Canofre

Maria Amélia de Cabral Domingos é da terceira geração de mulheres que nasceram de ventre livre. A primeira foi sua avó Amélia, de quem ela carrega o nome com orgulho. A mãe, Celanira, descobriu que liberdade só era liberdade quando a pessoa tivesse condições para ser o que quisesse. Como ela pouco tinha, Celanira colocou os filhos trabalhando em casas de família em troca de estudos em escolas particulares da capital. E foi assim que viu Maria Amélia se tornar enfermeira. Hoje, aos 59 anos, um retrato dela ocupa desde a última quinta-feira (16) espaço de destaque em frente à Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

Maria Amélia é uma das 23 mulheres negras homenageadas na exposição “Mulheres Negras que Fazem a Diferença no SUS”, organizada pela Secretária Municipal de Saúde. Ela conta que quando criança costumava ouvir da mãe, mulher nascida na época em que os negros tinham de lutar por sobrevivência sozinhos, que “um negro não faz o outro”. Mas os tempos de Maria Amélia foram outros. Ela aprendeu que existe união na sua cor. A enfermeira do Hospital Materno Getúlio Vargas, voltado à questões da saúde da mulher e especialista em atendimentos à vítimas de abuso sexual, descobriu isso na profissão. “Posso não fazer diferença para uma mulher branca, mas quando chega uma mulher negra eu jamais penso que ela está do outro lado. Ela está do meu lado. Ela está do lado de quem precisou de alguma coisa e vou tratá-la com o mesmo respeito que eu gostaria de ser tratada”, conta.

Maria Amélia, a filha Letícia e a neta Maria Eduarda durante homenagem na Prefeitura | Foto: Fernanda Canofre/Sul 21
Maria Amélia, a filha Letícia e a neta Maria Eduarda durante homenagem na Prefeitura | Foto: Fernanda Canofre/Sul 21

Na homenagem realizada na Prefeitura Municipal junto a outras mulheres usuárias e trabalhadoras do SUS (Sistema Único de Saúde), Maria Amélia estava acompanhada de duas das três filhas e da neta, Maria Eduarda, de 17 anos. A filha Letícia, de 38, foi a única que decidiu seguir os passos da mãe. “Todas as conquistas que ela conseguiu através da enfermagem me estimularam a também seguir esse caminho. Hoje, ela foi reconhecida aqui. Mas por nós, ela sempre foi reconhecida”, diz.

Apesar de nunca ter sofrido racismo no ambiente de trabalho, Maria Amélia já se acostumou a ouvir todo tipo de histórias. “Tipo assim, tem uma pessoa ali que por ser negra está esperando atendimento há duas ou três horas, enquanto outra tem uma mais clarinha ou com olho mais claro, que passa na frente. É por isso que eu trabalho, em função da igualdade”, conta.

Mulheres de Raça

A homenagem em comemoração ao Dia Internacional da Mulher Afro Latino-Americana e Negra, celebrado em 25 de julho, já acontece há alguns anos. Esse ano, porém, a Secretaria de Saúde teve a ideia de colocar retratos delas para ocupar espaço de destaque em frente à Fonte Talavera. “Queremos também marcar o nosso lugar, de mulheres negras, que é sempre negado por essa sociedade racista e machista, relembrando a luta histórica que foi travada por aquelas que nos precederam. Além disso, marcamos nossa posição de trabalhadoras do SUS, tendo em vista que militamos por ele em nosso dia a dia”, diz Liziane Guedes, assessora de Políticas Públicas para a População Negra na Secretária de Saúde.

Enquanto as estatísticas mostram melhoras de alguns dados para a população em geral, quando se analisa dados isolados de cada grupo – negros, indígenas, pardos, brancos – se nota que para algumas populações os números pioram. O HIV em mulheres é um exemplo disso. E minorias sociais – como negros, pobres – acabam desfavorecidas.

O Boletim Epidemiológico de Saúde da População Negra em Porto Alegre mais recente foi publicado em 2013. O documento revela que “epidemia de aids em Porto Alegre é maior na população declarada como raça/cor pretos/pardos, comparativamente a de brancos, tanto em homens como em mulheres”, sendo mais que o dobro do observado em brancos. Além disso, as gestantes de raça preta e parda são as que registram maior incidência de HIV. Os números indicam que outras doenças, como sífilis e tuberculose, também afetam mais a população negra. A pesquisa, no entanto, nota que sem estudos que comprovem a relação destas doenças com suscetibilidade genética, o problema se trata de uma questão social.

Mulheres durante homenagem e lançamento da exposição na Prefeitura | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Mulheres durante homenagem e lançamento da exposição na Prefeitura | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Racismo mascarado

Desde que Porto Alegre implantou, em 2011, o programa de Políticas de Saúde Para a População Negra, ainda que levemente, os números tem melhorado. O programa se tornou referência nacional. O próximo passo será a implantação de um Observatório de Determinantes Sociais da Saúde da População Negra, que analise os dados de doenças ligadas à essa população para o desenvolvimento de políticas públicas que ataquem o problema. Na capital, 20% da população se identifica como negra.

“Ele (o programa) trabalha com ações voltadas para a saúde da população negra, mas também com um todo: atendimento integral e universal para os usuários. Ou seja, se eu atender uma mulher grávida e negra, eu sei que a consulta de 20 minutos vai ter que se tornar 30 minutos. Porque a mulher negra e gestante tem mais chances de desenvolver a doença hipertensiva gestacional, essa criança pode ter anemia falciforme, então é uma série de atributos que tem que ter durante o atendimento”, explica a enfermeira e apoiadora institucional do Políticas, Kelly Cristina Silva de Carvalho.

Nos 14 anos em que trabalha no SUS, Kelly testemunhou muitas histórias de racismo contra colegas. Uma das enfermeiras que trabalhou com ela foi chamada de “macaca” por um paciente que não concordou com o tratamento médico. “Tem aquele usuário que muitas vezes discorda, se é um profissional médico, que se auto-declara negro, muitas vezes o usuário não quer ser atendido por ele, porque acha que ele é menos inteligente que o outro colega que é branco. Muitas vezes isso é mascarado. Não é tão transparente como se imagina”, conta a apoiadora.

Foto: Caroline Ferraz/Sul21
A enfermeira, Jéssica de Lima, conta que há um trabalho de sensibilização dos profissionais e usuários sobre a saúde da população negra.| Foto: Caroline Ferraz/Sul21

O “Mulheres Negras que Fazem a Diferença no SUS” é um dos projetos da Área Técnica em Saúde da População Negra que tentam combater o racismo institucional e problematizar as discriminações presentes dentro da área da saúde. Uma das maneiras de desconstruir esses estigmas é através do trabalho de promotores treinados para atender a população. Atualmente, o Políticas Públicas para a População Negra conta com 150 promotores formados e 120 em formação. “Nós promotores fazemos um trabalho de sensibilização tanto dos trabalhadores, quanto dos usuários de saúde da nossa comunidade, para trabalhar essas questões de saúde da população negra, com base na política nacional”, explica Jéssica Hilário de Lima, enfermeira e promotora na região Glória, Cruzeiro e Cristal.

“Quando o trabalhador sofre esse preconceito, a gente tem como encaminhar uma denúncia e resolver uma situação, que pode ser, em relação ao próprio trabalho – um outro colega ser racista comigo –  ou na relação com usuários da comunidade”, afirma Kelly. “O usuário auto-declarado negro, ele se sente mais acolhido nesse serviço, porque ele sabe que ali tem um olhar diferenciado. Não que ele vá ser melhor ou pior atendido. Mas vai ser atendido de uma forma igualitária”.

Série de retratos de trabalhadoras e usuárias negras do SUS é exposta em frente à Prefeitura de Porto Alegre | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Série de retratos de trabalhadoras e usuárias negras do SUS é exposta em frente à Prefeitura de Porto Alegre | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

 

 


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