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5 de maio de 2014
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10:49

“A gente vive num país em que as desigualdades têm raça, sexualidade e gênero”, diz pesquisadora

Por
Sul 21
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Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
A pesquisadora Márcia Veiga estuda jornalismo e mídia | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Débora Fogliatto

Em 2010, a pesquisadora Márcia Veiga defendeu sua dissertação de mestrado, a qual recebeu uma bolsa fornecida pela CAPES e pela Secretaria de Políticas para as Mulheres. Ela conseguiu o benefício, apesar de o assunto ter sido considerado de menor importância por alguns colegas e não ser uma das principais áreas de estudo de sua orientadora. Na dissertação “Masculino: o gênero do jornalismo – um estudo sobre o modo de produção das notícias”, Márcia, que é formada em jornalismo, estudou as relações de gênero dentro de uma redação jornalística.

Atualmente, ao fim de seu doutorado, Márcia partiu para observar universidades, com a crença de que o que acontece dentro das salas de aula se reflete nas redações. Ela ajudou sua orientadora a implantar a primeira cadeira de gênero e mídia na Faculdade de Jornalismo da UFRGS, em 2014, e conta que houve muita demanda pelas aulas. Sua trajetória com o feminismo começou na atuação na ONG de direitos humanos Themis, onde atuou por sete anos.

Nesta entrevista ao Sul21, Márcia falou sobre o crescimento dos movimentos feministas em Porto Alegre e a Marcha das Vadias: “Eu acho que é muito interessante ver que o encabeçamento está sendo feito por jovens mulheres que me parece que trazem essa efervescência do feminismo novamente para a pauta social e política”.

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“Naquela redação eu fui entender que gênero é constitutivo não só das pessoas, mas participava das escolhas dos repórteres”| Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Ela também criticou a recente aprovação do Plano Nacional de Educação, em que a maioria dos parlamentares aceitou retirar a diretriz que propunha tratar de desigualdades educacionais, “com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”, sob pressão da bancada evangélica. A pesquisadora teceu comentários a respeito da lógica pós-estruturalista do feminismo, a importância da educação da diversidade e o poder do jornalismo na sociedade.

Sul21 – A tua dissertação de mestrado foi sobre gênero. Me fala um pouco sobre como tu realizaste esse trabalho, foi uma análise jornalística ou teve observação de caso? O que isso te fez perceber para esse trabalho?

Eu realizei uma etnografia durante três meses, dentro de uma redação de telejornalismo, observando as rotinas produtivas e tentando entender o processo. E daí eu trabalhei com o conceito de gênero, pensando nas relações de poder e numa categoria de produção do conhecimento, em como isso está nas coisas da vida para além dos corpos. E naquela redação eu fui entender que gênero é constitutivo não só das pessoas, mas participava da escolha dos repórteres, por exemplo. Em matérias consideradas “sérias”, investigativas ou de polícia, em geral se buscavam repórteres homens. Mas não exatamente, porque não eram todos os homens. Não bastava ser homem, tinha que ter um perfil associado ao masculino.

Fui percebendo que quem cumpria determinados atributos ficava mais próximo do poder e do prestígio. E podiam ser mulheres também, isso é percebido até pelo discurso. Elas usavam expressões como “eu não mostro os dentes para todo mundo, eu tenho um chicote”, então isso vai se construindo e quando se fala de gênero olhando para além dos corpos, percebe-se que ele está em diferentes instâncias.

Sul21 – Se percebe também que se trata muito não apenas de ser homem ou mulher, mas sim das coisas que são associadas ao masculino ou ao feminino. É isso?

Exatamente. Na nossa cultura costumamos valorizar a força, a pró-atividade, a imposição. Há uma noção de autoridade como autoritarismo. Naquela redação, por exemplo, enquanto o editor-chefe ficou doente, havia um revezamento entre dois editores, uma mulher e um homem. Essa mulher tinha uma postura considerada mais feminina, ela trabalhava em um sistema realmente de coordenação – que é um ordenar em conjunto – ela escutava os colegas, e para eles a relação profissional era melhor. Mas o reconhecimento da autoridade era do homem, ele tinha um perfil mais autoritário, impositivo, de mando.

“O que eu observei foi a cultura hegemônica perpassada num processo, numa outra cultura, que é a profissional”

Sul21 – Tu fizeste esse trabalho em uma redação de um grande veículo? Isso influenciou o trabalho?

Sim, foi uma redação grande. Foi em um programa telejornalístico de uma grande empresa. Foi muito interessante. Observei também que… Não é que eu não entenda o poder da empresa, não é nada disso. O que eu queria era saber quais eram as concepções de gênero dos jornalistas e em que medida elas perpassavam o processo de produção de notícias. E isso só pode acontecer em um método que permita estar junto, para perceber todo o processo. E esse acionamento dessas visões de mundo que são inconscientes.

Eu comecei a perceber que aquilo que a gente hegemonicamente via como certo e errado, e papéis de homens ou de mulheres, havia nos sujeitos uma noção sobre isso, e aquilo que eles achavam que seria a noção de seu público de certo e errado. E eu comecei a perceber também que essa “empresa” na verdade é feita por pessoas, e as pessoas têm valores. Talvez a gente até na própria formação foque muito na empresa como algo que é muito determinante, e isso pode causar uma certa autocensura. Eu não costumo divulgar onde foi que fiz essa pesquisa porque não é um caso específico. O que eu observei foi a cultura hegemônica perpassada num processo, numa outra cultura, que é a profissional.

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“Há ali sim um processo cognitivo, simbólico, que envolve sujeito” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – E de que forma tu percebeste realmente esse modo de produção das notícias que tu falas no título?

E eu acho que é muito legal ir lá (nas redações) observar e perceber que não é uma questão de maniqueísmo e de manipulação e de tanta dominação, estrutura e superestrutura. Há ali sim um processo cognitivo, simbólico, que envolve sujeito, que são os sujeitos da cultura, eles não deixam suas visões de mundo penduradas na rua quando entram na redação e entram de forma isenta. Não, esses sujeitos sabem e pensam coisas sobre o mundo.

É interessante que pelo que eu observei, nesses três meses em nenhum momento essa empresa foi lá e disse o que fazer ou não fazer. Eles tinham um tempo grande para fazer as matérias porque era um programa semanal. Então muitas coisas que achamos que são determinantes como o tempo, a empresa, não foram elementos definidores. Mas me parece que é interessante a gente começar a olhar o sujeito que está produzindo sentido sobre essas coisas, que é o jornalista. E é por isso que então eu passo no doutorado a estudar a formação dos jornalistas. Para mim a universidade é o lugar do pensamento crítico. Onde seria o lugar para refletirmos sobre isso? Quais são nossos valores de credibilidade? Quem são as pessoas que podem ou não ocupar esses espaços? E o lugar de olhar para isso, de fazer essa ligação da prática e da teoria, seria a universidade. A minha pergunta era como isso está sendo feito? Então eu parti para a universidade.

“De que forma a gente está conhecendo sobre as coisas do mundo, sobre aquilo que é tão naturalizado como ser homem e mulher, sobre a heterossexualidade ser algo compulsório?”

Sul21 – Tu fizeste observação em universidades também daí?

Sim, em duas. Eu estava tentando observar quais são os elementos da cultura que estão tão naturalizados, tão introjetados. E para isso é preciso uma práxis, tanto na profissão (de jornalista) quanto na profissão de ser professor, que é uma outra profissão. Mas como isso pode ser percebido na prática, e no fazer mesmo, enquanto se aprende? Essa reflexão me parece mais difícil quando já se está lá numa redação, é preciso ser problematizado antes.

Por Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“E como temos pensado sobre diferença, sobre alteridade, dentro do jornalismo?” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Essas coisas são muito naturalizadas, “ser homem” e “ser mulher”. E a gente não acessa esse tipo de conhecimento no senso comum. A gente precisa acessar outras formas de conhecer, porque pra mim o preconceito é parte de uma ignorância. E como diz a Guacira Lopes Louro, a ignorância não é a falta de conhecimento, é uma forma de conhecer. Então de que forma a gente está conhecendo sobre as coisas do mundo, sobre aquilo que é tão naturalizado como ser homem e mulher, sobre a heterossexualidade ser algo compulsório? E como temos pensado sobre diferença, sobre alteridade, dentro do jornalismo? E mais especificamente, no ensino do jornalismo?

Sul21 – A gente percebe que falta muito dessas percepções na faculdade. Tu achas que existe mais demanda por esse tipo de conhecimento?

Sim, acho que sim. A gente tem, em especial nos jovens, um novo momento. Estamos vivendo momentos de comportamentos que não têm mais como a gente ver a realidade com lentes antigas, muito menos da perspectiva de um sistema binário de pensamento em que há uma fixidez do sujeito. Não há mais como ler esses sujeitos, eles estão aí e precisamos ver como vamos compreender. E precisamos ver quais são as novas lentes com que vamos ver, me parece que as teorias são lentes importantes. Há um interesse imenso sobre isso, eu fui procurada por vários alunos que queriam ser orientados. E eu fico fascinada, vejo em redes feministas da internet muitas jovens que já estão militando, homens entrando na discussão. Me parece que há na contemporaneidade uma possibilidade muito maior de começarmos a repensar as coisas, começar a desnaturalizar certas questões investindo na educação de pessoas mais jovens.

“Se continua morrendo por ser mulher, ou por se ter alguma manifestação do feminino no seu corpo, ou por ser de uma raça considerada inferior”

Sul21 – Então pra ti a melhor forma de se começar a ter profissionais conscientes sobre isso é através da educação, dos jovens?

Sim. Mas a gente teve agora, por exemplo, a questão do plano nacional de educação no Congresso Nacional, que deveria ser para se investir no conhecimento. A escola é um local que se produz relações de gênero e sexualidade. Os professores precisam conhecer isso. Às vezes se tem um aluno que está lá sofrendo homofobia e não se sabe o que fazer. Então é preciso haver um reconhecimento, mas esse é um jogo político forte que temos no Brasil, do reconhecimento de um pensamento conservador que impede que isso possa ser tratado.

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“O que transforma a diferença em desigualdade é o plano simbólico, é a cultura, não é a natureza” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

O que transforma a diferença em desigualdade é o plano simbólico, é a cultura, não é a natureza. E é preciso investir isso. Se em pleno século 21 uma maioria evangélica barra isso, quer dizer que nos próximos anos não vamos poder discutir isso, mas vamos poder ter aulas de religião. Para mim é incompreensível. A força política dos movimentos evangélicos precisa ser pensada, refletida, desde sempre. Dessa forma não podemos formar nossos professores para se ter uma evolução para que se possa sair desse estado, em que se continua morrendo por ser mulher, ou por se ter alguma manifestação do feminino no seu corpo, ou por ser de uma raça considerada inferior. E não tem mais como ser assim. E aí em nome de valores religiosos se suporta que as pessoas estejam morrendo ainda dessa forma. Os movimentos sociais sempre estiveram aí, e eles dizem que suas formas de estar no mundo também são valores, também são pessoas. E vão continuar, vai continuar havendo pressão, e que bom. Ainda tem bastante para avançar, e eu não vejo outra forma que não seja através do conhecimento.

É por isso que eu defendo, é uma postura política, a formação do jornalista no sentido de que a universidade é o lugar para produzir esse pensamento crítico. No momento em que tu produzes sentido sobre os fatos da realidade, querendo ou não, está interferindo nas formas como ela é compreendida.

Sul21 – E qual a importância de que existam mais estudos sobre feminismo e sobre essas diferenças dentro do jornalismo? Com mais pesquisas a respeito, será que seria possível mudar a prática?

A gente tem redações ainda majoritariamente de classe média, branca. Por mais que o crescimento de mulheres ocupando redações tenha sido muito grande, volto para aquela questão de que talvez as mulheres que ocupam lugares de poder estejam revestidas de atributos de gênero que seja masculino, porque esse é o lugar do poder na nossa sociedade ocidental. É preciso ser reconhecida com esses atributos para poder estabelecer uma linguagem que também faça sentido nesse campo que é historicamente masculino. Então me parece que, ao mesmo tempo em que se percebe isso, tu podes ver nesse sujeito uma possibilidade de transformação. A gente lida o tempo todo com diferença, desigualdade. A gente vive num país em que as desigualdades têm raça, cor, sexualidade e gênero.

As cotas, por exemplo, estão trazendo novas classes e cores para dentro do jornalismo, que é branco. E mesmo que haja gays dentro das redações, a norma ainda é heteronormativa. Desde que se encaixe, tudo bem. Sempre observando a norma que diz que o centro é branco, masculino, heterossexual, de classe média ou alta. Me parece que ao se ampliar essa noção de mundo, para mim pelo menos funcionou dessa forma, que através do conhecimento tu começas a olhar o mundo de outra forma, é diferente e libertador. Isso liberta a forma como tu olhas para as pessoas também.

“Como é esse encontro com o outro? O teu diferente não precisa ser tão desigual”

| Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“As cotas, por exemplo, estão trazendo novas classes e cores para dentro do jornalismo” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – E os jornais tendem a sempre atender aos interesses mais hegemônicos.

E se tu tomares sempre a mesma base, que é aquela mais hegemônica, vai continuar nesse registro. Vai olhar a realidade dessa forma, utilizar essa base. É muito difícil fazer o que a Eliane Brum chama de “esvaziamento de si para escutar o outro”. Porque o ser humano é etnocêntrico por natureza, temos as nossas visões e as nossas verdades. Mas isso precisa ser provocado. O antropólogo, por exemplo, recebe essa formação, porque ele também vai narrar o outro. De formas diferentes, em maior ou menor medida, mas vai. E como é esse encontro com o outro? O teu diferente não precisa ser tão desigual. Ele vai ser no momento em que tu achares que está investido de melhores atributos e melhor localizado na hierarquia social do que aquele que tu vais ouvir. E se tu já estabeleceres essa relação assim, não tem como ouvir o outro. É preciso também entender que temos valores, verdades, mas que eles não são absolutos, e qual a construção deles. Porque achamos que as mulheres são assim, porque achamos que algumas coisas são normais e outras não. E esse é um pensamento muito pequeno ainda no jornalismo.

Sul21 – E os jornalistas e estudantes de jornalismo em geral estão muito distantes, me parece, da academia. Acho que não se estuda sobre esse olhar crítico que vem da academia. Tu percebes que existe esse distanciamento?

Com certeza. E até mesmo para tu entrares com um arcabouço desses, não dá para haver um distanciamento. Quando se vai abordar determinadas perspectivas de pensamento, é importante que isso seja pensado com uma forma pedagógica que aproxime a realidade que está sendo vivida com aquela prática profissional, aquela técnica. Quando se faz a correção crítica de um trabalho de um aluno, além do jornalês, é procurar compreender como o aluno procedeu produzindo uma desigualdade em algo que ele entendeu como diferente. Nessas relações entre a teoria e a prática, que vem sendo mesmo um dos nós históricos do jornalismo.

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“O jornalismo é uma ciência aplicada, ela pode transformar” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Há na universidade ainda um reconhecimento de um saber, e há nesse lugar sim o lugar de pensamento crítico. Se não há na universidade, onde há? Porque nós nascemos inseridos em uma cultura. Onde aprenderemos a problematizar isso? Se não for na universidade, será onde?

“Mas talvez ainda dê tempo de fazer diferente, de se colocar em um lugar mais crítico. A gente só precisa olhar porque não está sendo”

Sul21 – E ao mesmo tempo, se não for no jornalismo que se problematiza isso, onde vai ser?

É. O Adelmo Genro Filho, que foi o cara que criou a teoria do jornalismo no Brasil, ele via ali o potencial transformador, crítico e revolucionário do jornalismo. Porque em última instância, o desejo genuíno dessa minha tese e daquela dissertação é o de construir. O jornalismo é uma ciência aplicada, ela pode transformar. Se talvez tenha conseguido ser mais conservador do que revolucionário, tudo bem. Mas talvez ainda dê tempo de fazer diferente, de se colocar em um lugar mais crítico. A gente só precisa olhar porque não está sendo. E a gente vê jornalistas conseguindo furar essa bolha, vê pessoas se destacando para um jornalismo atuante, diferente. A lista vai ficando cada vez maior de possibilidades. Acho que a mídia alternativa é uma forma de ação que tem que existir mesmo. Mas não podemos dizer “ali tem que deixar, não dá para resolver”, dá sim. Tem que pensar, tem que fazer diferente.

E me parece que todo esse discurso de que “a empresa tem uma ideologia”, sim, tem, mas todos nós temos. Ideologias que talvez não sejam político partidárias, mas temos.

“Mas a realidade é muito complexa, então me parece que o jornalista precise bastante mais tentar se esvaziar de suas certezas para poder escutar”

Sul21 – O jornalismo nunca problematiza, e os alunos de jornalismo sentem falta disso mesmo.

Exatamente. A gente talvez precise de mais perguntas, menos certezas. E o jornalismo se relaciona com esse paradigma moderno de pensamento, que busca simplificar, responder, explicar. Sempre tem essa ideia de que precisamos ouvir “os dois lados”. Como assim dois lados? Às vezes esses dois são um só. A gente também tem que pensar que temos uma ideia de leitor ideal, sociedade ideal, um normal ideal. E se a gente não traz isso de volta, essa agência do sujeito, do profissional que está ali, a gente acaba não potencializando que ele tem um papel que pode ser sim revolucionário, de complexificar mais. Às vezes simplificar não ajuda, complexificar ajuda. Me parece que em última instancia a forma como tomamos conhecimento sobre as coisas do mundo nos ajuda a ampliar como cidadãos o nosso olhar. E aí ampliando a nossa cultura. E nesse caso o jornalismo tem um poder maravilhoso.

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“Eu posso escutar e narrar essa história tentando compreender o contexto e humanizar essas pessoas”| Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Por exemplo, se eu saio da redação para fazer uma matéria sobre o parque da Redenção à noite. E eu já saio com a concepção de que lá só tem “veado, traficante”, sabendo o que eu vou encontrar, há muito pouco para eu querer conhecer. E aí se eu chego lá e tem uma “corte”, tem uma rainha que é a cross dresser, e ela me explica o que é ser cross dresser, e porque essa corte existe. Bom, eu tenho uma história. Como eu vou narrar essa história? Aí isso faz toda a diferença. Porque eu posso escutar e narrar essa história tentando compreender o contexto e humanizar essas pessoas, ou eu posso partir do senso comum, do conhecimento hegemônico, de que se não é homem nem mulher não é nada, se está no parque de noite é marginal.

Ou seja, a gente tem concepções de mundo, a gente acha coisas. Mas a realidade é muito complexa, então me parece que o jornalista precise bastante mais tentar se esvaziar de suas certezas para poder escutar. E não há narrativa sobre o outro sem a escuta. Muito provavelmente esse outro tão diferente vai se transformar num desigual se a gente não souber se colocar em perspectiva. E isso é algo que se pode ser treinado em um conhecimento especializado, que é a universidade. A própria imprensa está sendo criticadíssima porque não consegue compreender, se colocar e escutar a complexidade do mundo para o qual ela escreve.

Sul21 – Eu queria te perguntar o que tu achas desse crescimento da Marcha das Vadias em Porto Alegre, que só aumenta e nesse ano teve esses dois trajetos.

Eu acho bárbaro. Eu acho que é muito interessante ver que o encabeçamento está sendo feito por jovens mulheres que me parece que trazem essa efervescência do feminismo novamente para a pauta social e política. E eu acho que aí tem uma subversão da linguagem que nesse caso é muito desses nossos tempos e do que os pós-estruturalistas falam de subverter a linguagem, de pegar algo que tem um significado pejorativo e tu subverte.

Há também uma questão geracional, talvez as feministas antigas tenham um questionamento. É muito plural, mas é ótimo, está mostrando um reacendimento de uma forma política muito bacana. E muitas vezes difícil de ser compreendida. O senso comum não reconhece “como assim, está se chamando de vadia?, isso está tão atrelado a valores hegemônicos tão fortes na nossa cultura, isso já está atrelado a um moralismo. Mas aos poucos acho que mais gente vai compreendendo, e o movimento vai crescendo também. Quanto mais a gente puder falar sobre isso, ler e ver, mais fácil fica de compreender. O exercício da alteridade passa muito por poder olhar para as coisas com menos verdades e tentar compreendê-las.

| Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“O exercício da alteridade passa muito por poder olhar para as coisas com menos verdades e tentar compreendê-las” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

“Me parece que talvez o mais difícil nesses embates todos é não reproduzir a mesma lógica que se está combatendo, de querer se impor, dominar”

Sul21 – Tem uma discussão entre as feministas radicais e a teoria queer, que já era feita há algum tempo nos Estados Unidos, que discordam em muitos pontos. Isso chega a ser uma divisão? Como tu enxergas essa discussão?

Eu acho que isso é muito legal, porque mostra a complexidade dos movimentos feministas. Quando na década de 1970 as feministas brancas de classe média começaram a falar em nome “das mulheres”, as negras, lésbicas, mulheres de classes trabalhadoras começaram a dizer que não estavam representadas. E ao mesmo tempo há os estudos gays e lésbicos, que começam a fazer seus estudos e depois se chega à teoria queer. E há esse embate porque no feminismo a categoria “mulher” ainda é uma categoria política muito forte. E nos estudos de gênero se procura transcender, questionar a heteronorma, que acaba também impondo normas de ser aos não-héteros, estabelecendo papéis binários. Mas isso deixa de fora toda uma categoria de pessoas, como algumas travestis que se consideram como héteros. Isso é muito complexo para o senso-comum compreender.

A teoria do patriarcado ainda coloca nos corpos biológicos, tu só é mulher se tiveres nascido com uma vagina, ainda está atrelado à biologia o ser mulher. Que tanto se discute que essa opressão estaria atrelada a uma questão cultural. Me parece que ela não dá conta de pensar relações de gênero e poder entre casais de mesmo sexo, mesmo entre mulheres, por exemplo. A teoria do patriarcado sempre parte do pressuposto de que nasceu homem é dominador e nasceu mulher é dominado, o que também engessa posições e não complexifica e não dá contadas coisas. Eu me filiaria, nos estudos de gênero aos estudos pós-estruturalistas, mas há pleno reconhecimento da legitimidade de todos os movimentos e seus embates.

Por Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“O pós-estruturalismo ajuda a olhar como na linguagem as coisas estão construídas” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/ Sul21

Acho super válido que seja complexo mesmo, e muito interessante que as redes sociais tenham permitido maior visibilidade e aderência de meninas jovens ao movimento feminista. É uma pluralidade de divisões que parece salutar para vermos que as coisas não são tão simples assim mesmo. Quando a gente vai partir para estudar e olhar, fazemos uma filiação teórica, mas não posso achar que o lugar pelo o qual estou pensando é melhor do que o dos outros. Me parece que talvez o mais difícil nesses embates todos é não reproduzir a mesma lógica que se está combatendo, de querer se impor, dominar.

Sul21 – Me fala um pouco dessa lógica pós-estruturalista.

A nossa lógica no Ocidente é masculinista. Falamos que a violência é um problema mas se dá armas de brinquedo para uma criança, se acha muito normal os Estados Unidos se autointitular o bastião da democracia e quando vê uma democracia diferente da sua invadir, dominar, ao invés de dialogar, que é algo relacionado ao feminino. A gente valoriza isso, temos uma lógica muito masculinista. E o pós-estruturalismo ajuda a olhar como na linguagem as coisas estão construídas. Porque a gente nomeia, valoriza e hierarquiza. Quando a gente vai olhar para as coisas do mundo, estão nomeadas, têm valor e estão hierarquizadas. E tem uns caras pós-colonialistas que chamam o capitalismo de um sistema de mundo que não se restringe à sua dominação, não coloniza só a partir de um viés econômico, mas também coloniza a nossa episteme. Determina qual é a raça, qual é a sexualidade legítima, qual é o gênero, a pedagogia, coloniza todo um sistema. Por isso não podemos pensar mais as relações econômicas ou num viés de classe. Há toda uma colonização da episteme, do pensamento. Há uma forma de pensar que também é colonizada.

“Quanto mais visibilidade se tem, mais se torna palatável, mais se consegue, mesmo que estranhando”

Sul21 – Seguindo nessa lógica de precisarmos ver mais para compreender mais, a gente percebe que os homossexuais em gera têm aparecido mais na televisão brasileira, e existe esse embate entre se isso é bom ou se isso está sendo feito de uma forma estereotipada, que só perpetua estereótipos. O que tu achas disso?

O estereótipo sempre é aquilo que talvez fique mais conhecido, principalmente sobre as coisas que não estão na norma, talvez seja o primeiro movimento que se consiga fazer. Mas eu ainda assim acho que essa visibilidade contribui para que as pessoas possam se construir em sua identidade. Porque essa norma que nos assujeita diz diretamente respeito à nossa identidade. E poder perceber, ver pessoas na rua, enxergar casais diferentes na televisão é importante. E isso é processo também.  Quanto mais visibilidade se tem, mais se torna palatável, mais se consegue, mesmo que estranhando. Porque aquilo daqui a pouco não é mais tão estranho. Há uma tentativa de pautar esses assuntos, de trazer isso.

O nosso senso-comum não é formado por saberes menores, é formado e informado por instâncias de poder e de saber. Foram nessas instâncias que foram formuladas as ideias de o que é normal e o que não é, de o que interessa e o que não interessa. Isso não está apartado de um conhecimento dominante. Não é da ignorância do pobre, do analfabeto que essas coisas surgem. Elas estão formadas, e a gente nasce nesse contexto. E os meios de comunicação, assim como o jornalismo, são parte da cultura, também são influenciadas por lugares de poder e de saber. Há coisas que são tão naturalizadas que é difícil questionar, como o fato de ser homem ou mulher.

| Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“E os meios de comunicação, assim como o jornalismo, são parte da cultura, também são influenciadas por lugares de poder e de saber” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – E no jornalismo também há essa questão de perpetuar os estereótipos.

O que se pode olhar é em que medida quando surge uma nova identidade, em que medida isso está baseado em preceitos que possam excluir outros? O que a gente percebe é que nem mesmo aumentando o número de letras conseguimos dar conta da complexidade humana. Mas as novas identidades vão forçando, e as novas formas de relacionamento vão te forçando a buscar como jornalista, há uma força externa que se não está vindo de dentro, está vindo de fora, está movimentando e exigindo que se possa pensar de outra maneira. Porque a gente diz que escreve para a população de uma forma em geral.

“Eu acho que precisamos conhecer a norma, precisamos entender como ela foi criada nesses espaços de poder e de saber historicamente”

Sul21 – Para finalizar, eu queria te perguntar sobre essas questões relacionadas a populações LGBT tentando se encaixar em uma norma heterossexual. Ao mesmo tempo em que existe isso, existe também o movimento de “orgulho gay”. E eu me pergunto se será que o movimento LGBT quer se mostrar como “nós somos diferentes” ou se luta para que algum dia não precise fazer isso, se normatize essas identidades também?

A norma existe, e ela não é às vezes inscrita na lei, mas se sobrepõe. Eu gosto de usar o caso da Geisy Arruda para exemplificar isso. Porque ali a norma de gênero estava se sobrepondo, ela estava se comportando de uma forma que os colegas julgaram que uma mulher não deveria se comportar. E é o que muitas vezes acontece em casos de violência contra a mulher, quando as mulheres “não obedecem” ou respondem, vão sofrer sanções. Assim como os homossexuais, que não estão respondendo aos seus papéis de gênero determinados, estão desviando. Eu acho que precisamos conhecer a norma, precisamos entender como ela foi criada nesses espaços de poder e de saber historicamente. Como o Estado-nação brasileiro, quando teve essa ideia, que sujeito era esse? Como surgiu esse conceito de Estado branco? Que limpeza étnica era essa que se precisava fazer para se ter essa sociedade? Era permitido ter relações com mulheres negras para ir branqueando. Enfim, olhar para as nossas histórias de outras formas. Essas normas têm sido construídas e têm sido transformadas.

Isso passa também por aquela subversão da linguagem. O movimento negro também faz isso, porque até hoje algumas pessoas dizem “aquela moreninha ali” e as mulheres negras dizem “moreninha? Eu sou negra”. Isso tem a ver com a nossa história. É um primeiro movimento poder afirmar isso que é negado, que é trazido como inferior, como menor. Em geral tu tiras a humanidade das pessoas quando tu chamas elas de determinadas formas. E ao subverter isso através da linguagem tu estás afirmando que aquela diferença é sim normal.


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