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16 de abril de 2015
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13:38

Menos um caminhante em Montevidéu 

Por
Sul 21
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Foto: Fernanda Canofre
Foto: Fernanda Canofre

Por Fernanda Canofre
Especial para o Sul21

A capital do Uruguai nasceu quieta, como um ponto de observação português, banhada nas águas de um rio que parece mar; e ali, entre prédios antigos de um país encubadora de leis de vanguarda no sul da América, Eduardo Hughes Galeano morreu. Não foi por acaso que o escritor tenha escolhido essa esquina ao costado do Río de La Plata para partir. O ateu Galeano foi um caminhante devoto. Talvez herança no sangue dos Dias, que segundo os Maias, criaram os homens quando se puseram a caminhar. E mesmo em seus anos de exílio e andanças pelo norte, Argentina e Sibéria, Galeano não há de ter encontrado no mundo lugar onde o céu estivesse mais perto do chão, onde o vento tivesse a identidade desse que sopra a rambla de Montevidéu.

O escritor poderia ter escolhido qualquer lugar, em qualquer dos continentes para escrever. Ou poderia ter ficado em Barcelona, onde fez uma vida e acompanhou a ditadura golpear seu país. Mas quis voltar ao sul. “Montevidéu é uma cidade que escolho. É a cidade onde eu nasci. Mas uma pessoa não está condenada a escolher a cidade onde nasceu”, disse em entrevista ao amigo Eric Nepomuceno em 2011. “Eu a escolhi porque é uma cidade respirável e caminhável, ou seja, ainda se pode respirar e caminhar na cidade de Montevidéu. São dois luxos difíceis no mundo de hoje. Desde que eu era novinho, a professora me dizia: ‘Respira, Eduardito, que é importante!’”.

Eduardo Galeano tinha nas caminhadas uma filosofia. Dizia que assim economizava “uma fortuna em psicoanálise”. E nos cafés, seu templo. Dizia que foram esses redutos montevideanos os responsáveis por sua formação desde que largara a escola, antes de concluir o secundário. Foi assim que o Café Brasileiro, na rua Ituzaingó, virou seu lugar cativo por anos. Entre fotos de Mario Benedetti, Juan Carlos Onetti e outros intelectuais que frequentaram desde 1877 as cadeiras de madeira escura, as de Don Galeano dão conta de quem foi o cliente mais ilustre. Era ali que concedia entrevistas aos jornalistas estrangeiros que vinham atrás de suas frases, e recolhia a última pilha de livros de admiradores em busca de um autógrafo ou autores desconhecidos atrás de uma opinião. Atrás do caixa do Café, ficou a última leva que Galeano já não veio buscar.

Foto: Fernanda Canofre
Foto: Fernanda Canofre

Nos últimos anos, no entanto, acabou encontrando outro refúgio em Montevidéu, distante da Ciudad Vieja.

Depois da dor com a perda de seu companheiro Morgan, Galeano jurou que não queria mais saber de outro cachorro. Mas quando Macarena, a neta reencontrada do poeta Juan Gelman, apareceu com um cocker spaniel cor-de-café, não resistiu. Por algum tempo, Maco foi Maca em homenagem a ela. Quando descobriram que se tratava de um macho, Galeano tratou de mudar a última letra. Assim, ganhou outra vez companhia nas caminhadas. Foi com Maco que chegou pela primeira vez há uns quatro anos no único restaurante da rambla da Praia de Buceo.

A dona do Restaurante Parador Oasis, Miriam Diaz Pirez, economista por formação lutava com a burocracia da prefeitura para manter o lugar aberto. Perto dos 60 anos, assim como boa parte de sua geração, apesar de não estar nas linhas de militância, Miriam sempre foi alinhada à esquerda. Ficou viúva ainda jovem, do primeiro marido guardou durante toda a vida na cabeceira o último presente que ele lhe dedicou: “O Livro dos Abraços”.

Na divisa entre Buceo e Malvin – bairro que sempre dá vitória a coalisão do Frente Amplio – o restaurante de Miriam se acostumou a receber figuras da esquerda como Mauricio Rosencof, tupamaro companheiro de Mujica, e Raúl Sendic, filho, atual vice-presidente do Uruguai. No dia comum em que Eduardo Galeano entrou pela primeira vez em seu restaurante, não acreditou. “Nesse dia, já postei uma foto no Facebook. Para que as pessoas vissem, ‘Olha o cliente que tenho’”, lembra com uma risada larga e afeto na voz.

Foto: Fernanda Canofre
Foto: Fernanda Canofre

O cliente virou amigo depois de um punhado de conversas na tarde da praia calma de Buceo. Depois de pedir sua taça de vinho branco “bem frio” ou um Daiquiri (o “trago” que Hemingway descobriu em Havana, foi inserido no cardápio a pedido de Galeano) os dois entravam em suas longas discussões. “Às vezes coincidíamos, outras nem tanto” , diz Miriam. “O que mais falávamos é que eu sou muito cristã e ele muito ateu, nessa diferença tínhamos uma comunhão incrível. Tirávamos passagens da Bíblia e líamos pelos dois pontos de vista. Essa possível dicotomia tão afastada, nos aproximava muito”. Miriam sempre esperou que o amigo fizesse seu voto de fé.

E aí mudavam o tópico, iam da economia e política uruguaia – “falávamos sobre em quem íamos votar” – aos causos da América Latina e das viagens de Eduardo. O favorito de Miriam, que segundo ela sempre fazia Galeano gargalhar, era seu conto sobre a vez em que encaminhou um pedido de visto para conhecer o Grand Canion. “Quando tu vais à Embaixada dos Estados Unidos, te fazem tantas perguntas que são tão óbvias e tão tontas que ríamos até chorar. ‘Tu queres matar o presidente dos Estados Unidos?’; ‘tu és traficante de armas?’; ‘gosta de usar drogas?’. Eu teria morrido de vontade de marcar sim em tudo, porque é ridículo. E ele foi e colocou sim. Então, por vinte anos, teve o visto negado. E eu disse: ‘Eduardo, então ficaste sem conhecer o Gran Cânion de Colorado?’. E ele: ‘Não, foram eles que me convidaram e estenderam tapete vermelho’”, Miriam ri tudo outra vez.

Foto: Fernanda Canofre
Foto: Fernanda Canofre

Às vezes Galeano marcava ali encontros com amigos, levava netos, outras ficava só olhando para o rio-mar, até que alguém o reconhecesse e pedisse um autógrafo. Dizia a Miriam que não precisava ter pressa em trazer a comida, já estava servido com aquela vista de natureza e água. Da última vez que passou por lá, estava com uma das filhas e Maco.

Pouco antes disso, em uma das últimas conversas, os dois falaram sobre o Brasil. Miriam descobriu em algum lado a teoria de que o nome do país vinha de “braseiro”, a forma de castigo que os portugueses impunham aos prisioneiros que jogaram na colônia. Ela conta que Galeano chegou a anotar qualquer coisa, curioso com a etimologia. “Talvez tenha escrito sobre isso. Quem sabe, algum dia, possa sair num livro que ainda vão editar”.

Galeano não parecia ser o tipo calado. Chegava e perguntava nomes, elogiava algum traço da pessoa. Certa vez, um amigo músico me contou que ali mesmo no Oasis, sem ter reconhecido o escritor, foi Galeano quem puxou conversa com ele. Depois de ele ter tocado algumas músicas, o senhor de boina sentado com seu cachorro, brincou: “agora é hora de passar o chapéu”. Mas Miriam diz que apesar do “estilo de harmonia e paz consigo mesmo”, às vezes algo escapava. “Às vezes se notava o olhar com certa tristeza, com certa lembrança, como dizem vocês (brasileiros). Parecia que lhe faltava algo”.

Miriam lembra de uma confidência. “Certa vez ele me disse: Juan Gelman foi meu melhor amigo e eu fui o melhor amigo dele”. Juan Gelman, poeta argentino que enfrentou a ditadura militar de seu país, virou um símbolo da luta por direitos humanos em sua busca pela filha, o filho e a nora grávida de sete meses sequestrados pelos milicos. Em 2000, Gelman encontrou Macarena, a neta, vivendo com uma família uruguaia, sem saber de onde vinha. O exame de DNA foi feito na casa de Eduardo. E ele a adotou como um avô de coração. Gelman faleceu aos 83 anos, em janeiro do ano passado.

Sobre as perdas, Galeano costumava dizer que deixavam “buraquinhos” impossíveis de se preencher novamente. O único consolo eram os encontros que ainda não haviam acontecido e que a vida tratava de providenciar. Talvez um encontro assim seja o responsável pela amizade inusitada de um escritor reservado e uma senhora extrovertida, falante e cristã. Logo que começamos a conversar, Miriam lamentando a morte do amigo, falou: “Tive muitos namorados, alguns maridos, mas ele que nem me tocou foi um homem que amei”.

Nas paredes do restaurante, estão dois recados escritos por ele à mão, há menos de um ano, assinados com o chanchito e a flor, sua marca registrada. Em um dos quadros, Galeano escreveu: “Aqui fui feliz. Gracias mil, gracias sempre a este Oasis que me lembrou que não estou, nem estarei sozinho”.

Foto: Fernanda Canofre
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