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21 de abril de 2015
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16:48

Casa de teatro para pacientes da saúde mental tenta se manter em meio a cortes

Por
Sul 21
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Foto: Guilherme Santos/Sul21
Sarau aconteceu na Casa de Teatro na semana passada | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

Em uma casa localizada na rua Dom Pedro II, no bairro Higienópolis, em Porto Alegre, usuários da rede de saúde mental têm a oportunidade de se tratar por meio do teatro. Lá não se mora, mas se vive: os atores amadores afirmam que a arte lhes trouxe melhoras consideráveis. Trata-se do local onde são realizadas as oficinas do grupo Nau da Liberdade, formado por pacientes da rede de atendimento psicossocial. Apesar da importância do espaço, trabalhadores e alunos estão tendo que lutar para mantê-lo em funcionamento.

Na casa, os pacientes podem participar de oficinas todos os dias pela manhã e em algumas tardes, trabalhando o corpo e aprendendo a atuar. Desde dezembro, o Nau da Liberdade tem um lugar fixo, depois de anos realizando oficinas de teatro de forma isolada nos residenciais terapêuticos e no Hospital Psiquiátrico São Pedro. Com o corte de gastos da gestão estadual, no entanto, duas funcionárias contratadas foram demitidas, restando apenas outros dois funcionários.

A Secretaria Estadual de Saúde informou o Sul21, no final de março, que esta casa era uma das três cujos contratos de aluguel serão cancelados. Segundo a nota enviada pelo poder público, o imóvel, “que foi alugado para sediar uma casa de teatro, não está cumprindo sua destinação original”. O aluguel tem valor de R$ 7.600. Por enquanto, apesar do anúncio, as oficinas continuam funcionando no local, mas para se manter lá, os funcionários estão estudando alternativas, como a participação em editais de cultura.

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Além de apresentações, Casa conta também com trabalhos artísticos | Foto: Guilherme Santos/Sul21

A vontade de ver a casa funcionando é tanta que até mesmo as funcionárias demitidas continuam trabalhando de forma semi-voluntária, com promessa de serem pagas com o que o grupo pretende conseguir nas apresentações programadas para o próximo mês. As funcionárias que trabalham nos residenciais terapêuticos também auxiliam em eventos, como o que ocorreu na última quinta-feira (16), o Sarau da Nau da Liberdade.

Música, dança e teatro como tratamento

O sarau reuniu, por exemplo, pessoas que normalmente frequentam as oficinas e ex-internos do Hospital São Pedro, que agora vivem na Morada Viamão. Moradores da Casa da Praça, residencial terapêutico da zona norte de Porto Alegre, também marcaram presença. “Eles ficam muito ansiosos, quando eu chego lá já estão arrumados para vir, e depois passam o dia todo comentando e esperando as próximas vezes”, conta Gabriela Litvin de Avelar, residente da Escola de Saúde Pública que trabalha na Casa da Praça.

Um dos mais animados é Cacá, morador da Casa da Praça, que no Sarau, cantou e arrancou aplausos. Junto com outros atores, participou também da apresentação de uma peça, em que cantaram e dançaram. Na casa, alunos e funcionários circulam livremente, com a condição de tirarem os sapatos quando vão entrar no salão onde acontecem os ensaios e apresentações. Para o sarau, alguns quiseram se maquiar e usar figurinos.

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Cacá, morador da Casa da Praça, colocou maquiagem, dançou e cantou | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Esse trabalho é feito por Maira Pinto, artista plástica e figurinista que era contratada e foi demitida no início deste ano. Ela fez residência multidisciplinar em Saúde Mental e logo começou a trabalhar com o grupo, o que a encantou desde o início. “Antes, entrava só com a minha arte, mas fui me incluindo aos poucos no teatro em si e também fui me soltando, desenvolvendo esse lado. Isso a Nau possibilita aos usuários e funcionários, todos se transformam”, afirma.

Na quinta-feira, o apresentador dos números do sarau era Marlon, que participa das oficinas e gosta de compor, fazer poesias e atuar. “Eu chego aqui de manhã, ajudo a organizar. Acho que de certa forma os outros às vezes vão no meu embalo e também viro um pouco professor”, conta ele, que cantou durante o evento.

Solange, uma das alunas da Casa de Teatro que já foi internada diversas vezes durante a infância e juventude, também participou. Ela cantou uma música própria em espanhol e português, pois “a situação psiquiátrica é universal”. Na letra, ela descreve um pouco do sofrimento pelo qual passou em diversas internações, afirmando que “há muita dor por trás das portas da psiquiatria” e concluindo que “a reforma psiquiátrica chegou para nos libertar”. Sua história é de diversas internações sem resultados concretos, a mais longa dela por três meses, após os quais, fugiu.

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Sol compõe músicas e poemas sobre a situação psiquiátrica | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Conhecida como Sol, ela cantou o rap “Caçadores de mentes doentes”, em que conta que desde a juventude foi internada e sofreu alguns maus-tratos, explicando que sua “inteligência nem sempre foi assim”, pois alguns profissionais da saúde mal preparados “quase me calaram”, deixando-a trancada em uma sala com remédios de que não precisava.

Sol vive na Lomba do Pinheiro em sua própria casa, que adquiriu com ajuda do benefício LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social), concedido a pessoas com deficiência física ou mental. Ela faz a oficina de teatro e realiza algumas que são no Hospital São Pedro, além de ser atendida na Unidade Básica de Saúde perto de onde mora. “Eu era hiperativa e as pessoas não tinham paciência comigo, eu acabava sendo um incômodo para elas. As pessoas não estão acostumadas com crianças grandes”, reflete ela, que aos 46 anos mantém disposição para brincar, dançar e cantar. “Eu aprendi a ter domínio sobre as minhas emoções, e as artes me ajudaram muito nisso”, relatou.

Essa ajuda se tornou visível no momento em que a música “Viver e não ter vergonha de ser feliz” começou a tocar durante o Sarau, quando todos os presentes foram dançar juntos. Alguns tinham dificuldade de mobilidade, andando com problemas ou usando as mãos para se locomover, mas isso não os impediu de dançar e cantar.

Os funcionários lamentam apenas que, com a iminência do fechamento, alguns alunos já estejam regredindo, por perceberem a tensão instaurada no local. Para Sol, que participa das oficinas desde que o Nau da Liberdade iniciou — em uma parceria com o grupo italiano Accademia della Follia, em 2013 — as artes cênicas são indispensáveis. “O teatro é livre, é terapêutico em todos os sentidos”, defendeu.

Polêmicas

As políticas de saúde mental da gestão estadual têm sido alvo de críticas desde que foi anunciada a nomeação do psiquiatra Luiz Illafont Coronel para a coordenação de área. Ele se reuniu com o Conselho Estadual de Saúde em fevereiro, onde foram colocadas as preocupações dos ativistas, que reclamaram ter tido poucas respostas concretas. Em março, o Fórum Gaúcho de Saúde Mental foi à Assembleia Legislativa dizer que o governo estava cancelando aluguéis de residenciais terapêuticos. Para protestar contra o fechamento da Casa de Teatro e dos residenciais, ativistas planejam um ato para a manhã desta quarta-feira (22), em frente ao Palácio Piratini.

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