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15 de março de 2014
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20:18

A memória das pedras: artista apresenta litografias recuperadas da Livraria do Globo

Por
Sul 21
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Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Débora Fogliatto

Em 2001, a artista e professora Miriam Tolpolar recebeu, na oficina de litografia do Atelier Livre de Porto Alegre Xico Stockinger, cem pedras que haviam sido retiradas do piso da antiga Livraria do Globo. As peças, trazidas pelo colega artista plástico Danúbio Gonçalves, eram na verdade obras artísticas e históricas que, ao cair em desuso na primeira metade do século XX, tornaram-se parte do calçamento do terreno da livraria. Apenas em 2010 Miriam terminou de avaliar o material e percebeu o seu valor.

Eram matrizes com antigos rótulos, imagens, desenhos, vinhetas, diplomas, notas promissórias, entre outras imagens e textos que ainda estavam registrados na superfície das pedras. Então, a artista e o técnico Paulo Rogério Lopes da Rosa começaram a restaurar, imprimir e catalogar as litografias, um processo que duraria dois anos e culminaria na exposição Memória da Litografia: Pedras Raras da Livraria do Globo, no Centro Cultural Erico Verissimo até o dia 30 de abril, e no livro de mesmo nome. As pedras, calcários oriundos da Alemanha, estavam totalmente danificadas quando chegaram às mãos de Miriam. “Algumas estavam quebradas, outras tinham pedaços de cimento. Elas não estavam decorando a livraria, os carros passavam por cima, as pessoas andavam por cima”, explica a artista.

Mestre em Artes Visuais pela UFRGS, Miriam Tolpolar entrou em contato com técnicas de gravura primeiramente no final de sua graduação, em especial ao frequentar a oficina do Atelier Livre em 1974. “Quando eu conheci a lito, fiquei encantada com a técnica e acabei me envolvendo cada vez mais, e meu trabalho ficou bastante vinculado à gravura”, conta. Pouco mais de vinte anos depois, e após a realização de mais um curso nos anos 1980, ela voltou ao Atelier, como professora de litografia.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Das pedras que Miriam recebeu como doação para a oficina, 40 integram o projeto, realizado ao longo de dois anos de “trabalho muito intenso”, com o apoio do Fundo de Apoio à Cultura (FAC) da Secretaria da Cultura do RS. A artista lançou, junto com a mostra, um livro em que explica o processo, conta histórias e curiosidades e esclarece os procedimentos da litografia. “Eu pensei que o projeto, pelo tamanho dele e a profundidade do trabalho, tinha que ter um registro. Então o fato de ter uma publicação, ter um livro, faz com que o projeto ande mais, se propague mais longe”, acredita Miriam.

O livro foi impresso na editora Trindade e teve sua concepção de fotos e design feita pela Fotoletra. Exemplares da publicação estão à venda na Palavraria e na Livraria Cultura, no shopping Bourbon Country. Além da mostra e do livro, Miriam criou também uma página no Facebook e um blog, através dos quais pessoas interessadas no projeto entram em contato com ela. “Graças à página, recebi mensagens de oficinas de lito do México, da Argentina, e assim fiquei sabendo de projetos deles lá”, relata.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Histórias do projeto

Enquanto restaurava os rótulos e imagens, Miriam realizou pesquisas no Museu Júlio de Castilhos sobre as figuras restauradas, para encontrar alguma referências para fazer as impressões, em termos de cores, por exemplo, que não são registradas nas matrizes das pedras. Nessa busca, ela percebeu que um dos rótulos, de uma padaria, tinha um endereço ainda visível. O nome da cidade, apesar de incompleto, foi possível desvendar: era a sílaba final da palavra Jaguarão. Com uma pesquisa na internet, a artista descobriu que o local, chamado Padaria Victoria, ainda existia na cidade, no mesmo endereço e com a construção do prédio ainda intacta. “Eu falei com a dona, que é a neta do fundador. E aí eu acabei indo para conhecer, fotografei, e isso está no livro”, conta.

Outra história registrada no livro é a de um rótulo da marca Vinho Familiar. Miriam reconheceu o sobrenome como sendo o mesmo de uma das fotógrafas que trabalhou com ela no projeto. Ao questioná-la, descobriu que João Dallegrave, dono da marca, era o avô da fotógrafa, Cylene Dallegrave, que contou que ele trazia o vinho de Caxias do Sul para Porto Alegre, onde o vendia em uma carroça.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

A litografia

Técnica inventada na Alemanha há cerca de 200 anos com objetivos comerciais, a litografia foi utilizada no Brasil até aproximadamente a década de 1930. A técnica consiste em utilizar uma pedra calcária como carimbo, a partir de um processo químico baseado na repulsão entre água e gordura. A impressão é feita em prensas específicas, a partir das matrizes, e depois as cores são impressas uma de cada vez.

A oficina de litografia do Atelier Livre ainda é bastante procurada, quase cem anos após a extinção da técnica. Segundo Miriam, embora não seja a turma mais cheia, sempre há artistas e alunos interessados nesse tipo de gravura. Para realizar as impressões, é necessária a presença de um artista e um técnico, que lida com a prensa. No caso de Miriam, esse trabalho é realizado por Paulo Rogério Lopes da Rosa, que trabalha na oficina desde 1984. Ele aprendeu a técnica com seu pai, Nelcindo da Rosa, que também é impressor, e com o artista Danúbio Gonçalves, precursor da oficina.

Quando o processo foi ser substituído pelo offset, as pedras se tornaram obsoletas, e no caso da Livraria do Globo, foram colocadas no calçamento do terreno. Isso não significava necessariamente que as peças estavam sendo subestimadas, conforme explica Miriam. “Eu acredito que eles devem ter pensado ‘agora estamos com esses milhares de pedras ocupando muito espaço. O que a gente vai fazer com isso?’. E quando tu vive aquele momento, não tem a dimensão do valor dessas imagens”, argumenta, ponderando que “Talvez o ser humano dentro da história precise ter um distanciamento para entender a importância daquilo”. Ela conversou com os antigos donos da Globo, Cláudio e Fernando Bertaso, que demonstraram não perceber o valor artístico das litografias na época: eles entregavam as pedras para quem pedisse, já que não eram mais úteis.                                                                             

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
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