Agenda Clandestina
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14 de agosto de 2020
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18:21

Agenda Clandestina: O legado de Chica Xavier

Por
Sul 21
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Agenda Clandestina: O legado de Chica Xavier
Agenda Clandestina: O legado de Chica Xavier
Foto: Documentário Jurema (Chica Xavier)/Reprodução YouTube

Revista Clandestina

No último sábado, 8 de agosto, o Brasil se despediu de uma de suas maiores atrizes de todos os tempos: Chica Xavier. Vítima de câncer de pulmão, a artista morreu aos 88 anos no Hospital Vitória, onde estava internada, no Rio de Janeiro. Com mais de 60 anos de carreira na televisão, no teatro e no cinema, Chica se destacou como uma das maiores referências da representatividade negra na arte brasileira. Em homenagem à artista, a Agenda Clandestina de hoje recorda a vida e a trajetória artística de Chica Xavier.

Nascida em Salvador, em 1932, desde a infância Francisca Xavier já mostrava sua vocação para a arte, como conta a escritora Teresa Montero, autora do livro ‘Chica Xavier: Mãe do Brasil’. Na escola, a artista declamava e escrevia poesias, sendo conhecida como a oradora oficial da turma. Filha de mãe solo, Francisca começou a trabalhar cedo. Com apenas 14 anos, ela se tornou aprendiz de encadernadora na Imprensa Oficial na Bahia. Os colegas de trabalho foram seus primeiros espectadores — com frequência, após ir ao cinema, Chica encenava para eles trechos dos filmes que assistia. Entretanto, o sonho de se tornar atriz ainda estava a alguns estados de distância, no Rio de Janeiro. Foi quando seu padrinho, o educador Anísio Teixeira, assumiu a direção do INEP (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos) que a oportunidade de ir para o Rio surgiu.

Em 1953, aos 21 anos, Chica Xavier se mudou para o Rio de Janeiro e começou a estudar no Teatro Duse, com Paschoal Carlos Magno. Três anos mais tarde, ela subiu aos palcos pela primeira vez com o espetáculo ‘Orfeu da Conceição’, de Vinícius de Moraes. Com trilha musical composta por Tom Jobim e Vinícius e cenários de Oscar Niemeyer, a estreia de Chica marcou a história do teatro brasileiro — era a primeira vez que um elenco de atores e atrizes negros participava de um espetáculo no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. A partir da peça, a carreira de Chica alavancou. Em 1962, ela atuou em seu primeiro filme, ‘Assalto ao Trem Pagador’, de Roberto Farias, e, em 1973, estreou na televisão com a novela ‘Ossos do Barão’. Desde então, a atriz participou de diversas produções da Rede Globo, somando 26 novelas, 11 minisséries e 10 programas especiais. Algumas de suas novelas de maior destaque foram ‘Sinhá Moça’ (1986), ‘Renascer’ (1993) e ‘Força de um Desejo’ (1999). A artista ainda trabalhou no Canal Futura e nas TVs Bandeirantes, Manchete e Educativa.

Em 1999, Chica lançou o livro ‘Chica Xavier canta sua prosa’, reunindo as cantigas e rezas que compôs para louvar seus santos de fé. A religião e a espiritualidade acompanharam-na desde a infância e se faziam presentes em todas as esferas da sua vida. Ela se declarava uma pessoa sincrética — católica, espírita, candomblecista e umbandista.

Como destacou a própria atriz no livro ‘Damas Negras’, de Sandra Almada, o trabalho mais marcante de sua carreira foi a minissérie ‘Tenda dos Milagres’, de 1985. Inspirada no romance homônimo de Jorge Amado, a produção apresenta a luta do velho ogã Pedro Arcanjo pela preservação e difusão da cultura africana. Nessa missão, o protagonista é guiado por Magé Bassã, papel interpretado por Chica Xavier. “Eu tinha um sonho na vida, que era o de voltar à Bahia com sucesso. Queria fazer uma personagem que fosse uma mulher baiana e mostrar aos meus conterrâneos que apareci, que surgi no Rio de Janeiro como atriz, mas que mantinha minha ‘baianidade’. E foi Tenda dos Milagres que me deu essa oportunidade. Fazer Magé Bassã, uma mulher do povo, uma mulher do candomblé, uma mulher de raiz afro. Isso para mim foi importantíssimo”, relatou no livro.

Em 2010, Chica foi agraciada com o Troféu Palmares, concedido pelo Ministério da Cultura, por sua atuação no campo cultural. Mais do que precursora e símbolo para as gerações de atrizes e atores negros que a sucederam, Chica Xavier foi uma ativista do movimento negro brasileiro. Quando integrou a Fundação Cultural Palmares, ela participou dos debates sobre a Lei Nº 10.639, que tornou obrigatório nas escolas o ensino sobre a história e cultura afro-brasileira e incluiu a data de 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, no calendário escolar. “Ela era uma mulher atuante no seu campo de trabalho e nas instituições que procuraram dar voz aos cidadãos negros que sempre viveram marginalizados. A caminhada é longa e Chica Xavier contribui muito com seu exemplo”, ressalta a autora Teresa Montero. Por muitos anos, Chica foi também funcionária pública, trabalhando em diversas instituições de educação, principalmente por influência de seu padrinho, Anísio Teixeira. Para a autora Teresa Montero, o contato de Chica com o campo da educação permitiu-lhe construir um olhar diferenciado e consciente como cidadã e artista. “Chica sempre levantou a bandeira da educação”, lembra a escritora.

Para escrever a biografia ‘Chica Xavier: Mãe do Brasil’, Teresa teve alguns encontros com Chica. A tranquilidade que a artista emanava foi o que mais chamou sua atenção nessas ocasiões. “Eu sentia que estava diante de uma mulher sábia. Ser uma ialorixá, viver da forma como ela viveu, não pode ser visto como algo comum. Ela era muito simples. E gostava de ser mãe. Ela me disse que ficou feliz com o título do livro porque aparecia a palavra mãe. Era o jeito de ela se colocar no mundo. Acolher, ajudar. Viver para o outro. Chica não demonstrava vaidade por ser artista (….). A arte era um espaço de criatividade, de beleza, de poesia, a favor do ser humano”, recorda a autora.

Para Chica Xavier, não havia nada mais importante que a família em sua vida. Tanto que a atriz declarou inúmeras vezes não ter seguido no teatro porque isso tomaria o tempo dedicado à família. Nas telas, suas personagens carregaram o amor maternal que ela expressava fora delas. Mesmo com as limitações de papéis coadjuvantes, seu talento e carisma transformaram suas personagens em destaque nas tramas.

Além de uma grande atriz, Chica Xavier foi uma referência para muitos atores. Após o anúncio de sua morte, diversos artistas se manifestaram publicamente. Em suas redes sociais, o ator Lázaro Ramos revelou que ela foi umas das pessoas mais especiais que ele conheceu. “Quando ainda na Bahia eu sonhava em ser ator, era ela uma das minhas inspirações. Cheguei ao Rio e tive o privilégio de trabalhar com ela e generosamente, como fazia com todos, ela me acolheu, me passou ensinamentos, me apresentou a sua linda família, e abriu as portas da sua casa para que eu soubesse que ali, onde ela era ialorixá, era um lugar de fé e acolhimento”, contou. Camila Pitanga também prestou homenagens: “Fica a inspiração e herança da sua arte. Você foi e sempre será uma gigante para o nosso povo. Estrelas não desaparecem simplesmente, meninas e mulheres pretas terão em você um símbolo de luta e resistência”, disse a atriz.

Chica deixou o marido, o também ator Clementino Kelé, com quem foi casada por 64 anos, três filhos, Christina, Izabela e Clementino Junior, e três netos, Ernesto Junior, Luana Xavier e Oranyan. Além da saudade que preenche sua ausência, permanece o legado de uma mulher que se eternizou como uma das grandes atrizes da história da dramaturgia brasileira.


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