Marco Weissheimer
Contrariamente ao que escreveu Hannah Arendt, não há nada de banal no mal. O brutal assassinato do menino Bernardo Uglione Boldrini, de 11 anos de idade, no município de Três Passos (RS), mostra que banal é a tese da banalidade do mal. Cabe lembrar o significado dessa palavra tão repetida pelos quatro cantos do mundo – e tão pouco pensada – a partir do uso que a pensadora alemã fez da mesma. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o significado original da palavra “banalidade” remonta a coisas pertencentes a um senhor feudal, utilizadas pelos vassalos mediante pagamento de certo foro. Por extensão, o termo passou a designar algo sem originalidade, comum, trivial, vulgar. O que há de comum ou trivial no assassinato de uma criança de 11 anos em uma comunidade supostamente pacata do interior do Rio Grande do Sul?
Hannah Arendt cunhou a expressão ao cobrir, em 1961, para a revista The New Yorker, o julgamento do nazista Adolf Eichmann por crimes de genocídio cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. O recente filme de Margarethe von Trotta, que reconstitui a passagem de Arendt por esse julgamento, mostra como ela teria ficado impressionada com a “aparência comum” de Eichmann e tomado suas alegações de que seria um mero burocrata nazista cumprindo ordens superiores como um elemento para a comprovação da tese da banalidade do mal. Para ela, Eichmann não apresentava características visíveis de um caráter doentio e parecia ter agido motivado por uma lógica burocrática, sem refletir sobre o bem ou mal. O mal, defendeu, tem uma dimensão política e histórica e se manifesta fundamentalmente onde encontra espaço institucional para isso. O que é perturbador no filme de Margarethe von Trotta é que o ponto de origem de toda essa formulação parece ter sido a impressão subjetiva que a aparência supostamente comum (e banal) de Eichmann causou em Hannah Arendt. Esse impressionismo foi pintado com um verniz filosófico que até hoje encontra adeptos.
Retomemos a pergunta feita acima: o que há de comum, ordinário ou trivial no assassinato de Bernardo Boldrini? É difícil ver o comum ou o ordinário se manifestando aí. Além da dimensão insuportavelmente perversa do acontecimento em si, vale notar a profunda e dolorida reação que causa em quase todo mundo que toma conhecimento do mesmo. Como assim, como isso pode acontecer? O fato de os principais suspeitos serem o pai do menino e a madrasta contribui decisivamente para retirar o crime do terreno do ordinário, do comum, do banal. Tomando, no sentido contrário, a imagem do filme sobre o julgamento de Eichmann, que teria dado origem à tese da banalidade do mal a impressão que o acontecimento e seus personagens causam é a de um evento insuportavelmente extraordinário e demasiadamente perto de cada um de nós.
Em editorial publicado nesta quarta-feira (16), o jornal Zero Hora ensaia uma politização do caso, identificando uma “aterrorizante rotina de atrocidades” no país. “Os episódios macabros abalam não só a comunidade de Três Passos, mas a população inteira de um país em que os limites entre a convivência civilizada e a barbárie foram ultrapassados há muito tempo”, diz o texto. Não há nenhuma exclusividade brasileira, e muito menos gaúcha, nas manifestações do mal. Só pode pensar assim quem acredita ou defende a mitologia de que o Brasil é um país abençoado por Deus e bonito por natureza, que não tem terremoto nem vulcão, ou que o “Rio Grande” é uma terra cujas façanhas servem de modelo a toda terra. Acontecimentos como este de Três Passos mostram que o mal e a perversidade não respeitam fronteiras nem classe social e se alimentam, entre outras coisas, da ausência ou das falhas de instituições republicanas criadas para proteger a vida.
Isso não significa se comprometer com a tese de um mal absoluto metafísico pairando sobre a história dos homens. Há sempre uma dimensão institucional que cerca esses episódios. No caso em questão, a atuação dos órgãos de proteção à infância que não conseguiram prever e deter o crime que acabou se consumando. Neste sentido, o Estado, suas instituições e as da sociedade falharam em seu papel de proteger quem exige proteção. Chama a atenção uma ausência no editorial de ZH, quando ele lista uma série de instituições que teriam alguma dose de responsabilidade no episódio: “a família, a escola, a comunidade nas suas mais diversas formas de representação, Polícia, Ministério Público, Conselho Tutelar e Justiça”. Apesar de mencionar que “a reação efetiva às mortes com crueldade é uma tarefa de todos”, o texto é incapaz de mencionar o papel que os meios de comunicação têm na construção do que chama de “rotina de atrocidades”. Da forma como o texto é construído, a instituição “empresas de comunicação” parece pairar acima da sociedade. Mas esse não é o ponto central que gostaria de destacar aqui.
O ponto é que crimes como este nos retiram do universo do banal, do comum, do ordinário, do burocrático. Se nos dispusermos, em nome, ao menos, da dor e do sentimento de desproteção que esse crime hediondo causa, a não levar a sério as alegações de Eichmann, isto é, a não acreditar em carrascos, temos de ter a decência de não tentar predar um acontecimento em nome de interesses ideológicos e políticos.
Uma criança foi assassinada, violentamente, e os principais suspeitos são o próprio pai e a madrasta, com a cumplicidade de uma amiga, que se diz assistente social. Esta criança frequentava uma escola privada, e uma das professoras chegou a confirmar que sabia que ele passava todos os fins de semana fora de casa e que a escola era o seu lar. No início do ano, Bernardo buscou ajuda, alegando “indiferença” e “desamor”. A sua mãe, que supostamente se matou em 2010, no consultório do pai, com quem vivia, tinha uma mãe, a avó de Bernardo, que não vinha tendo acesso à criança. Na rede social Facebook, na página do pai e da madrasta de Bernardo, não há fotos do menino. Temos aí um concentrado de perversidades individuais e sociais e falhas institucionais. A banalidade, neste caso, é nenhuma. Já o mal, aparece por inteiro, com toda a sua capacidade de nos aterrorizar e assombrar nossas vidas ordinárias.