Por Fernanda Melchionna
O dia 5 de julho de 2015 entrará para a História, pois o povo grego decidiu nas urnas que não aceitará mais a chantagem dos capitalistas financeiros da União Europeia (UE). Há muito o vulcão grego começou a entrar em erupção, como definiu o companheiro Pedro Fuentes, Secretário de Relações Internacionais do PSOL à época.
O início da resistência nas ruas à aplicação dos programas de austeridade diante da crise econômica do capitalismo aberta em 2007-2008 são as sementes do que estamos acompanhando atualmente. Lembro bem do primeiro levante juvenil, em 2008, que há décadas (desde o fim da ditadura grega) não acontecia no país, com grandes mobilizações contra o assassinato de Alexandros Grigoropoulos, jovem de 15 anos de idade, pela polícia. Milhares de jovens sacudiram o governo de direita da Nova Democracia. Foram dezenas de greves gerais até a força de resistência nas ruas se converter em possibilidade de governo.
Não nos esqueçamos da potente greve de 2010, uma greve política contra a austeridade/ajustes, no mesmo ano em que o Syriza, coalização da esquerda que venceu as últimas eleições, conseguiu apenas 4,6% dos votos. Nesse tempo, o modelo bipartidário de revezamento de governos entre o socialdemocrata Pasok e o Nova Democracia, de direita, era a regra – em uma analogia ao que acontece no Brasil com o PT e o PSDB. Trocava-se o seis por meia dúzia e em cinco anos foi ininterrupta a aplicação das chamadas políticas de austeridade e de ajuste.
Em 2010, medidas brutais foram impostas ao povo com o chamado Programa de Resgate. Na verdade, era um resgate para financiar os bancos franceses e alemães, que detêm a ampla maioria dos títulos da dívida grega. Naquele momento, a dívida ultrapassava 100% do PIB do país, o desemprego entre os jovens era de 50% e o montante a ser pago estava perto dos 200 bilhões de euros. Para dar outros empréstimos aos gregos, condições draconianas foram impostas: privatizações, aumento da idade para aposentadoria, redução de até 30% dos salários nominais do povo e aumento de impostos da gasolina.
O Plano de Resgate, de fato, funcionou apenas para quem foi feito: os banqueiros. Hoje, a dívida grega compromete 177% do PIB e já está acima de 271 bilhões de euros. Em recente Auditoria Cidadã da Dívida da Grécia, Maria Lúcia Fatorelli demonstrou que o dito Plano de Resgate foi a imposição de mais prejuízos à Grécia para dar liquidez aos bancos. Na verdade, o país não recebeu nenhum dinheiro, e sim papéis podres! Esses papéis, no contexto da crise do capitalismo, não tinham possibilidade de ser negociados facilmente, deixando a Grécia com uma dívida maior ainda sem receber nada líquido em troca.
Ainda dentro desse plano, o FMI impôs a criação de uma sociedade anônima privada chamada “Facilidade para a Estabilidade Financeira Europeia – ESFS” com sede em Luxemburgo, para servir como veículo para a realização dessas transações. Os gestores são os Estados Membros da Zona do Euro, muito embora apenas uma instituição financeira alemã tenha controlado o ESFS até então. Mas mais grave ainda é que este mecanismo serviu para que os jogadores do capitalismo internacional passassem para a Grécia os excessivos ativos tóxicos que colocavam em perigo a solvência dos bancos acostumados a especular em fundos de alto risco, como os conhecidos fundos hedge e outros instrumentos financeiros.
Não se surpreendam com as conclusões da Auditoria Cidadã: a EFSF é agora o principal credor da dívida. Segundo Fatorelli, “um escândalo de grandes proporções teria ocorrido em 2010, se esses esquemas ilegais tivessem sido revelados: a violação do tratado da UE, as alterações arbitrárias de regras processuais por parte do BCE (Banco Central Europeu), Eurostat e FMI, bem como a associação dos Estados-Membros à companhia privada de propósito especial de Luxemburgo. Tudo isso apenas para resgatar bancos às custas de um risco sistêmica para toda a Europa, devido comprometimento dos Estados-Membros com garantias bilionárias que cobririam ativos tóxicos1 problemáticos não comercializáveis e desmaterializados”2.
Ou seja, essa sociedade anônima embutida no programa de resgate funcionava como uma espécie de reciclagem, onde o país não recebia os recursos diretos e sim títulos podres e sem lastro material dos bancos credores. Tudo isso mascarado em operações de crédito como se fossem empréstimos. E ainda por cima, a Grécia ficava responsável pelo pagamento de juros e amortização como se tivesse recebido bilhões de euros!!! Não é por menos que desde 2010 a economia do país encolheu 30%, as pensões dos aposentados diminuíram em 50% e a taxa de desemprego entre os jovens chega a 60%. A Grécia foi a grande lesada dessa história.
Contra tudo isso, OXI (não) significa que a democracia venceu os interesses imediatos do capitalismo financeiro e empoderou um povo tão massacrado pelos governos anteriores. O futuro da Grécia e de outros países da União Europeia começou a ser mudado. O caminho não é fácil. Como disse Tsipras, “grandes mudanças exigem grandes sacrifícios”. A vitória estrondosa do OXI (não) fortalece a posição de enfrentamento aos parasitas do sistema financeiro. Que o governo tenha a sabedoria de aproveitar essa janela de oportunidade para modificar drasticamente as condições de vida do povo e, mais que isso, radicalizar a democracia, na qual a consciência e a ação andem juntas por um outro futuro em que a vida valha mais que o lucro.
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[1] Este termo tornou-se familiar com a crise financeira, aplicando-se não só à titularização dos créditos hipotecários, que permitiu aos bancos vender os empréstimos concedidos por si como títulos transacionáveis (como os MBS – mortgage backed securities), mas também aos produtos financeiros que a partir deles foram criados. É o caso dos CDS (credit default swaps), que são contratos de seguro do valor de um crédito em que o vendedor se compromete a indemnizar o comprador de todo o valor da dívida que não venha a ser paga. Embora estes ativos se apresentassem como muito arriscados, os ganhos que proporcionavam tornavam-nos irresistíveis, quer para as sociedades financeiras, quer para os gestores, que recebiam comissões em função dos seus desempenhos de curto prazo. Quando o setor imobiliário colapsou, tornou-se claro que estes ativos estavam sobrevalorizados. Mas os bancos e outras instituições financeiras resistiram à sua venda numa vã tentativa de evitar fortes desvalorizações. O sistema financeiro ficou assim entulhado de ativos que nada valiam. (…)
http://www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/index.php?id=6522&id_lingua=1&pag=7661
[2] http://www.auditoriacidada.org.br/tragedia-grega-esconde-segredo-de-bancos-privados-2/
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Fernanda Melchionna é vereadora do PSOL em Porto Alegre e integrante da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal.