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15 de março de 2018
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10:53

O Brasil e as evidências

Por
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O Brasil e as evidências
O Brasil e as evidências
“A lição de anatomia do Dr. Willem Röell”. (Cornelis Troost. 1728)

Marcos Rolim (*)

Uma das mais importantes modificações no âmbito das Ciências da Saúde se deu a partir do paradigma da “Medicina Baseada em Evidências” (MBE), introduzido nos anos 90 e cuja referência maior entre nós é o Centro Cochrane do Brasil, fundado pelo Dr. Álvaro Nagib Atallah. O movimento procura orientar o ensino e as práticas médicas no sentido de que os profissionais façam uso explícito e judicioso da “melhor evidência disponível” quando de suas decisões clínicas. “Evidência” (evidence) – uma expressão ainda pouco utilizada no Brasil fora do âmbito das Ciências da Saúde – significa prova colhida com base em estudos empíricos com metodologia científica.

Com base nessa mudança, os países mais avançados medem escrupulosamente os resultados de suas políticas públicas e temos o movimento conhecido por “policiamento com base em evidências” (Evidence policing), que estabeleceu o paradigma científico para as políticas de segurança. Há muitas evidências do tipo em todas as áreas do conhecimento e há evidências contraditórias derivadas de diferentes estudos. Como saber, então, qual a melhor evidência disponível?

A resposta aponta para a consistência das evidências. Evidências fortes exigem demonstração de efetividade (efeitos positivos no mundo real), eficiência (relação custo/benefício adequada), eficácia (efeitos positivos em condições ideais) e segurança (efeitos indesejáveis improváveis). Sabemos se uma evidência é forte ou não por vários caminhos críticos. O mais importante deles é oferecido pela comparação dos estudos científicos sobre um mesmo tema por procedimentos que vão desde os relatos de caso (nível VII de evidência), passando pela série de casos (nível VI), pelos estudos de caso-controle (nível V), estudos de coorte (nível IV), ensaios clínicos com menos de mil pacientes (nível III), grandes ensaios clínicos (mega trials) com mais de mil pacientes (nível II), e pelas revisões sistemáticas, com ou sem metanálises (nível I). Neste quadro, a opinião de um especialista, por exemplo, conta pouco (nível VIIII).

Os gestores no Brasil não costumam lidar com evidências. O quadro afeta também a dinâmica de ensino e produção de conhecimento nas Ciências Sociais onde seguem sendo raros os profissionais capazes de lidar com evidências. Não por outro motivo, é comum que as inflexões ideológicas e a superficialidade sigam largamente hegemônicas em áreas centrais como Educação e Segurança Pública, com a consequente ausência de políticas pública exitosas, danos inestimáveis à população, especialmente aos mais pobres, e extraordinárias quantias de dinheiro público lançadas ao ralo. A regra, aliás, tem sido a do desprezo absoluto diante do conhecimento científico em todas as áreas, menos na Saúde Pública onde a cultura e os protocolos da Medicina Baseada em Evidências ofereceram condições tais de excelência e racionalidade que é cada vez mais difícil que profissionais da área desconsiderem a ciência (ainda que existam maus profissionais que reproduzem preconceitos e que alguns deles até façam carreira política).

Nenhuma conquista, por mais elementar e consolidada, entretanto, está suficientemente protegida do objetivo maior do governo federal que, como todos sabem, consiste em conduzir o País celeremente em direção ao passado; se deixarem, até o século XVI. Ao início do mês, o Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad), vinculado ao Ministério da Justiça, aprovou nova Resolução sobre o tema privilegiando a abstinência como abordagem para o enfrentamento à dependência química, em detrimento das estratégias de redução de danos. A proposta, que irá aumentar o financiamento público às chamadas “Comunidades Terapêuticas”, vinculadas em sua maioria a grupos religiosos, ao invés de privilegiar a rede de atenção psicossocial, foi apresentada pelo ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, um dos entusiastas da política de “Guerra Contra as Drogas” que dilacera o Brasil.

Mais uma vez, o país é empurrado na direção contrária às melhores evidências disponíveis e, não por acaso, na contramão da tendência mundial de maior tolerância diante do consumo de drogas, especialmente da maconha que já é legal, para uso terapêutico e/ou recreativo, em vários estados americanos. O exemplo dos EUA, sintomaticamente ignorado por Terra, que também nunca foi informado sobre a experiência da “Lei Seca”, é significativo porque os EUA foram os proponentes da War on Drugs e seus governos apostaram tudo o que podiam na repressão, por quase 50 anos, sem qualquer efeito positivo.

Essa semana, tivemos outro exemplo da desconsideração com evidências. O Ministério da Saúde determinou que o SUS passará a financiar 10 “terapias alternativas”, entre elas florais, aromaterapia, bioenergética, constelação familiar e cromoterapia. Há, sem dúvida, muitas pessoas que apreciam essas abordagens e é possível que elas possam confortar de alguma maneira. O que se deve exigir, entretanto, quando falamos em uso do dinheiro público, é que o Estado só financie práticas amparadas pelas melhores evidências disponíveis. Não há evidências significativas em favor das terapias alternativas, pelo que a medida do Ministério da Saúde assinala outro retrocesso. Ainda que tais abordagens não acarretem danos, seu financiamento pressupõe um custo de oportunidade; ou seja, os recursos gastos com elas não serão utilizados com outras medidas que, reconhecidamente, produzem resultados terapêuticos. Segundo o Ministério da Saúde, cinco milhões de pessoas utilizam anualmente as práticas “integrativas e complementares” já admitidas pelo SUS. Agora, com a ampliação da lista, o número de usuários deve crescer. Enquanto isso, pacientes devem aguardar por meses até conseguir uma consulta com um cardiologista, por exemplo, ou para fazer uma cirurgia.

Viver em um país onde o Poder não considera evidências assusta. Por essa porta, transitam policiais que recebem revelações de profetas; promotores que acreditam que prisão domiciliar para gestantes detidas preventivamente irá estimular a gravidez; magistrados que decidem contra DNA e deputados que propõem a “cura gay” e que pretendem assegurar o direito ao porte de armas de fogo até para quem responde a processo criminal. Seguindo assim, em breve trataremos cólicas renais como um emplastro quente untado com mel e fezes de pombos.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016).

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