Céli Pinto (*)
A democracia no Brasil e no mundo tem sido tão ameaçada nas últimas décadas, que, paradoxalmente, a discussão sobre suas principais características, suas vantagens sobre outros regimes, sua capacidade de dar embasamento para projetos de sociedades justas e igualitárias perdeu o protagonismo no jornalismo, no discurso político e até entre muitos de nós, profissionais da Ciência Política.
No Brasil, ter impedido que nossa frágil democracia tivesse sido devastada completamente – caso o ex-presidente Bolsonaro, um extremista de direita desqualificado, tivesse conseguido permanecer no cargo, por vitória eleitoral ou golpe de Estado – provocou um alívio, uma espécie de relaxamento. Agora, parece caber à polícia, à Justiça Eleitoral e ao poder judiciário em geral tratar desta corja que desgovernou o país por 4 anos e acabou fugindo, com uma mala de joias embaixo do braço, numa rapinagem grotesca. E assim estamos acalmados.
Mas não podemos nos descuidar. A democracia no Brasil é um valor muito jovem e frágil, só se concretizou como razão da luta política no período da ditadura militar, quando os que lutavam pelo socialismo e pela justiça social sentiram nos corpos torturados o poder de uma ditadura e começaram a pensar na democracia como valor existencial, universal e político, inseparável de projetos libertários, socialistas, pós-capitalistas.
Fora do Brasil, a crise do socialismo real, na URSS e nos países que com ela formavam um bloco, dissociou fortemente o autoritarismo do socialismo. O fracasso mostrou ser necessário encontrar novas saídas para o bem viver dos povos. Se o socialismo fracassou naquele modelo sobrou uma esperança que poderia renascer em um projeto democrático.
Se, da ditadura militar no Brasil e em outros países do Cone Sul, bem como da crise do socialismo, sobraram lições, a mais forte foi que, sem democracia, não avançaremos para uma sociedade mais justa, para uma sociedade pós-capitalista. Os fracassos dos regimes de direita e de esquerda possibilitaram que pudéssemos dissociar de vez um enganoso mantra que democracia só existe em sociedades capitalistas e, mais ainda, nos possibilitou entender o próprio capitalismo, com um grande limitador para a construção de sociedades realmente democráticas.
Estamos num momento muito difícil. Por um lado, uma forte extrema-direita se espalha pelos diversos continentes do planeta e, por outro, com perdão da palavra da palavra, há um desleixo com a democracia.
Apesar de inexistir sem um regime político, a democracia precisa ser pensada para além dele, considerando a paridade entre os participantes no poder. Esta é a única forma de viabilizar a paridade econômica, de raça, de gênero, de orientação sexual, chegando no limite da eliminação das classes em uma sociedade pós- capitalista.
Não há lugar para ingenuidades e pensar que tal equilíbrio se ganha, se recebe de quem chegou ao poder, mesmo por meio de eleições democráticas e legais. Paridade no poder de decisão resulta de conquista com duras lutas.
Não nos iludamos em formar blocos economicamente fortes, se os recursos resultantes continuarem a ser distribuídos pelos mesmos e para os mesmos. Por exemplo, um país que mata mulheres porque não são virgens, as impede de trabalhar e viajar sem consentimento de um homem, que põe na prisão e até condena à morte gays e lésbicas, que emprega trabalhadores estrangeiros em condições análogas à escravidão e mantêm uma monarquia absolutista, não tem nada a contribuir para a justiça social e o bem viver dos povos, independente dos seu poder econômico.
O desenvolvimentismo, o crescimento do PIB, os pontos na bolsa são importantes, o enfrentamento às nações economicamente dominantes também, mas não resolverão as grandes questões que a humanidade enfrenta: como a fome; a perseguição a minorias de toda sorte; as guerras que matam centenas de milhares de pessoas para atender interesses escusos de poucos poderosos; a destruição das condições de vida no planeta.
Não é logicamente crível que os grandes problemas da humanidade possam ser resolvidos com a fortalecimento de um grande grupo de países majoritariamente conservadores, reacionários muitas vezes, e sem nenhuma proposta de avanço para além de um capitalismo predador e antidemocrático.
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É lógico, e até banal, afirmar que o governo do Presidente Lula é muito mais democrático do que o anterior. O processo decisório foi renovado, novas prioridades foram tomadas em consideração. Lula não cansou de repetir, durante a campanha eleitoral, que o governo não seria do PT, mas de uma grande aliança pela democracia, e estava certo. Isto, no entanto, não pode ser razão para que, como o grande líder popular de esquerda no país e fora dele, não se preocupe em buscar parceiros de esquerda pelo mundo, não se coloque, pela a importância que tem, como protagonista de um grande projeto democrático, que mire firmemente para uma sociedade pós-capitalista, pós-economicista, em que o bem viver esteja calcado em princípios filosóficos já sonhados desde meados do século XVIII.
(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS
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