Roselena Colombo (*)
Éris foi resgatada do universo grego para nominar a nova cepa do vírus Covid. Por coincidência ou não, o historiador Francisco Marshall utiliza essa mesma figura mitológica – irmã e oponente de Harmonia – para escrever excelente artigo sobre a devastação do Parque Harmonia e sua relação com interesses econômicos escusos.
Em ambos os casos, um nome simbólico e apropriado como síntese de desarmonia e devastação e que nos convida a estabelecer relações entre tudo o que estamos a viver.
Pensemos no brutal assassinato da líder quilombola Mãe Bernadete, na Bahia e no atentado a tiros na comunidade indígena Xokleng Konglui, aqui em São Francisco de Paula/RS. Pensemos em como essas violências se conectam numa intrincada rede de poder em que o Estado Democrático de Direito nunca chega nos mais pobres e nas comunidades indígenas e quilombolas.
Até quando?
Nessa versão pós-moderna do antigo sistema colonial os grandes impérios capitalistas usam nova roupagem para disfarçar a Trindade do Deus Mercado em terras semicoloniais – genocidio, pilhagem e devastação ambiental.
O pacto pela destruição permanente
Em seu catecismo eclético – pois sempre foi camaleônico e dissimulado – o que interessa ao Deus Mercado é o lucro seu de todo dia. Ora defendendo regimes políticos ditatoriais, ora defendendo democracias burguesas, nos faz pensar no personagem Fausto na obra de Goethe (1749-1832). Considerada a Ilíada da Modernidade burguesa, a tragédia do desenvolvimento, Fausto em sua sede inesgotável acaba por pactuar com Mefistófeles e o que de fato se impõe tragicamente é a destruição do passado como condição imutável rumo ao “progresso”. Se formos pensar na mentalidade de desenvolvimento contida no documento assinado por entidades empresariais a favor da continuidade das obras no Harmonia temos uma versão patética do drama faustiano, desprovida do refinamento do personagem em questão.
Assim também pensa o Prefeito Melo, cujo texto do jornalista Juremir Machado da Silva (As metamorfoses de Melo) refaz os caminhos que levam Sebastião a se transmutar no Melo privatista e ecocida.
Projeto “Éris”: de Harmonia à Prisão
É de se espantar que uma empresa especializada em construir prisões – considerada a número 1 em edificações prisionais – esteja responsável pela arquitetura do “novo” Parque Harmonia?
Em seu afã desenvolvimentista , o Prefeito Melo aproveitou-se do período pandêmico – novamente Éris em ação – para estabelecer um dos negócios mais lucrativos e obscuros, segundo o JornalJá.
Por outro lado, basta um passeio no Harmonia e uma leitura do projeto para ter a dimensão do estrago proposto.
Disfarçado de parque temático da cultura gaúcha, o parque-prisão é um caça-niquel cultural, ambiental e historicamente de uma pobreza escandalosa.
Nele, os ecossistemas que levaram décadas para abrigar cerca de 85 espécies de aves e mais de 1.000 árvores darão lugar a um shopping a céu aberto, com dezenas de lojas e restaurantes para a população que não tem grana passar reto e com alguns espaços temáticos totalmente fakes, num lugar que reproduz o que de pior nos ensinou a lógica antropocêntrica.
Na contramão dos debates atuais sobre a finitude do planeta, esperamos que esse parque-prisão não vingue.
E para que não prospere esse parque-prisão e outros projetos que atacam comunidades como as do Lami, Belém Novo, Morro Santana entre tantas da cidade – é preciso deixar de olhar somente para os quintais da Porto Alegre branca.
São as comunidades indígenas, quilombolas e periféricas, as guardiãs e herdeiras de nosso passado de luta e resistência. E é desde esse passado que elas apontam para outros futuros, de superação do Deus Mercado.
(*) Da coordenação do Projeto PoAncestral e integrante do Movimento Salve o Harmonia
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