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11 de agosto de 2020
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10:47

Depois, ainda as palavras

Por
Sul 21
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Depois, ainda as palavras
Depois, ainda as palavras

Marcia H. de M. Ribeiro (*)

palavras são legiões
de demônios
expulsos
Christiana Nóvoa na voz de Ludo

Ludo, portuguesa de Aveiro, viveu trinta anos em confinamento autoimposto no apartamento do Prédio dos invejados, em Luanda, acompanhada por Fantasma, seu cão albino. Os barulhos da revolução em Angola naqueles dias que antecederam à independência de Portugal, e nas notícias que chegavam pelo rádio quando havia eletricidade, confirmavam-lhe sua escolha de reclusão.

Ela não fazia cálculos sobre os riscos de sair ou ficar. Decidiu-se pelo isolamento pela certeza que os outros e a vida do lado de fora eram perigosos, cruéis, mortíferos. O desaparecimento da irmã e do cunhado na noite anterior à volta dos três para o país de origem, e, logo depois, a chegada de três homens à sua porta, dispostos a roubar, foram definitivos. Esse encontro, de desenlace trágico, a faz construir um muro de tijolos que esconde a entrada do apartamento e a mantém foradentro, separada dos vizinhos, da cidade. Mesmo assim, continuou afetada pelos humores e rumores, pelo que sabia e não via se desdobrar na vida pública.

Sinto medo do que está para além das janelas, do ar que entra às golfadas, e dos ruídos que traz. […] Sou estrangeira a tudo, como uma ave caída na correnteza de um rio. Não compreendo as línguas que me chegam lá de fora […] nem sequer quando parecem falar português […].

Teoria Geral do Esquecimento (Divulgação)

O medo do outro é temática recorrente na obra de José Eduardo Agualusa, e reaparece com força na personagem Ludo neste livro, Teoria Geral do Esquecimento, publicado em 2012. O medo que faz proliferar as imagens do absurdo quando se atravessa períodos de exceção. Apesar da crueza do tema, a escrita de Agualusa é leve, flerta com o chiste e a ironia revelando o importante. O absurdo participa da narrativa como elemento dobradiça entre o trágico e o cômico. Albert Camus foi mais enfático, disse a vida um absurdo, porque insistiria não seguir a ordem planejada, desejada. O incerto nunca acaba por se concluir. Reclama criação, pede outras e mais palavras para ajuste e reinvenção do rumo.

Vestida com uma caixa de papelão para confundir olhares intrusos, Ludo acompanha a passagem dos dias desde o terraço do apartamento. Contempla as mudanças da paisagem no entorno do edifício: o lixo que se acumula nas ruas e a ruína das edificações; a lagoa que ressurge no pátio; o crescimento da Mulemba, a árvore da palavra, habitada pelos pássaros e por um macaco, um corpo estranho à cidade, como ela.

O registro do tempo, vivido desde este lugar foradentro, se materializa pela queima dos livros e dos objetos da casa para manter a chama acesa, e atender as necessidades prosaicas; pelo fim da comida; pelas paredes transformadas em suporte do testemunho escrito a carvão depois que os espaços em branco das folhas dos cadernos estavam preenchidos com suas ideias, e as canetas, secas.

Se ainda tivesse espaço, carvão, e paredes disponíveis, poderia escrever uma teoria geral do esquecimento. […] transformei o apartamento inteiro num imenso livro. Depois […] de eu morrer, ficará só a minha voz.

Antes do fim da travessia do tempo em que não existiu para os de fora, porque ninguém percebera sua ausência, restavam-lhe ainda alguns livros. Companheiros que ela recusou ao fogo. Recordavam-lhe sua humanidade.

(*) Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Nota

[1] Poesia da personagem Ludo, escrita pela poetisa brasileira Christiana Nóvoa, a pedido de J. E. Agualusa para compor o livro: lavro versos curtos/como orações/palavras são legiões/de demônios/expulsos/corto advérbios/pronomes/poupo os pulsos.

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