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15 de setembro de 2020
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10:30

Sobre silêncios, sorrisos e máscaras

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br
Sobre silêncios, sorrisos e máscaras
Sobre silêncios, sorrisos e máscaras
 Foto: Luiza Castro/Sul21

Volnei Antonio Dassoler (*)

Foi neste inverno, numa manhã de temperatura amena e sem chuva. Por conta disso, as cadeiras da sala de espera do serviço público de atenção psicossocial ao qual dedico parte da minha vida profissional como psicanalista estavam todas ocupadas. A bem da verdade, em função das recomendações de distanciamento físico, duas ou três pessoas aguardavam do lado de fora. O habitual cumprimento de bom-dia foi respondido por alguns que, assim como os outros que permaneceram em silêncio, vestiam cada um a sua máscara.[/caption]

Enquanto executava os poucos passos necessários para atravessar a sala e entrar no ambiente reservado do consultório, fui acompanhado pela sensação de que algo parecia fora do lugar. Afinal, estávamos em um serviço de acolhimento à crise, e pairava no ar um silêncio que se mantinha quase ininterrupto. Raros pedidos de informações sobre horários e modalidades de atendimento se revezavam com conversas triviais e lacônicas que bordeavam a agitação contida dos corpos.

Intrigado (mais do que desconcertado) com a atmosfera de silêncio, lancei-me ao trabalho. Como orienta o protocolo, nesta nova forma de interação social, em especial no campo da saúde, o uso da máscara como fator de proteção é regra tanto para o profissional quanto para o paciente, que não devem retirá-la durante todo o tempo da consulta. Naquela manhã, dois novos usuários seriam acolhidos por mim. Quando o primeiro entrou e sentou a uma distância segura, de súbito, retirei a máscara, que encobria a parte inferior do meu rosto, me apresentei e, em seguida, voltei a colocá-la. Na sequência, pedi que ele fizesse o mesmo. O ato impensado até aquele momento não respondia à curiosidade de saber, por exemplo, se aquela pessoa usava batom, piercing ou qual seria o estilo de bigode escondido atrás do símbolo destes tempos de pandemia.

No breve instante que se fez entre os gestos de retirada da máscara e de seu retorno à função de proteção, um tanto de surpresa foi inevitável e sensível. Nenhum de nós disse nada parecido com “você é diferente do que eu imaginava”; aliás, nada foi dito sobre isso, embora não tenha me esquivado de um pequeno sorriso constrangido como testemunho pela pequena transgressão à moldura biopolítica. Aliás, qualquer comentário seria estranho e desnecessário.

Desde então, em cada primeira consulta com pacientes novos, recupero esse ato – que já não é mais impensado e nem tampouco pensado, apenas e tão somente necessário como um gesto de singularização que instaura um furo na superfície deste artefato que nos torna demasiadamente iguais uns aos outros. Por certo, esse procedimento ocorre em outros serviços de saúde, especialmente em unidades hospitalares que se ocupam de casos graves, nos quais a vulnerabilidade física não se faz desacompanhada da experiência do desamparo. É em contextos como estes que o olhar recupera seu valor e função estrutural na gênese do eu pela dialética que se constitui entre sujeito e semelhante, desdobramento clínico fundamental em conjunturas em que o desamparo ganha contornos de urgência.

A crise é uma experiência subjetiva que deixa entrever o estremecimento e o abalo das referências simbólicas e imaginárias que nos guarnecem de alguma proteção de sentido. Em seu lugar, sobrevêm a incerteza e a insegurança, circunstâncias em que o apelo ao semelhante e ao Outro é dramático e urgente. Contemporaneamente, essa dimensão subjetiva e, por vezes, clínica, articula-se pela intromissão da violência (trauma), pela iminência de ruptura com o laço social (associado à problemática do suicídio), pelo sofrimento intenso causado por perdas afetivas (lutos e rompimentos amorosos) e pela retirada de interesse pelo mundo (depressão). Não por nada, o silêncio que habita as salas de espera cede facilmente seu lugar à fala no convite à travessia pelo desfiladeiro de significantes. A meu ver, esta realidade, hoje, não é exclusiva de um serviço de crise. Cada vez mais, em todos os lugares, as pessoas estão de prontidão, em silêncio, à espera de alguém com quem falar, falar e falar…

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. dassoler@terra.com.br

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