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20 de outubro de 2020
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10:10

Um mundo fora de sintonia

Por
Sul 21
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Um mundo fora de sintonia
Um mundo fora de sintonia
Imagem de MichaelGaida por Pixabay

Luciano Mattuella (*)

Quando criança, eu só conseguia dormir com a televisão ligada.

A luz azulada levemente bruxuleante trazia uma sensação de conforto que me permitia cair no sono. Entretanto, não eram raras as vezes que eu acordava no meio da madrugada e a emissora já havia acabado a sua programação. Sou desse tempo em que até as televisões descansavam. Ver aquelas listras verticais coloridas no aparelho trazia um vazio, algo que, agora mais velho, sei chamar de desamparo. Logo, mudei a minha estratégia: em vez da televisão, passei para o rádio.

Eu tinha um rádio-relógio daqueles clássicos: cor preta, quatro ou cinco botões em cima, dois dials nas laterais: um para o volume, outro para a sintonia da frequência. Os números das horas em um vermelho que podia ser ajustado: mais forte ou mais fraco. Eu deixava na luminosidade mais baixa, para não atrapalhar o sono.

Diferente da televisão, o rádio era infinito. Não importava a hora em que eu acordava durante a noite, as ondas sempre chegavam até o meu quarto, em uma casa no interior do Rio Grande do Sul. Enquanto a maior parte dos amigos gostava de ouvir música no rádio, eu sempre preferi os programas de notícias e de debates esportivos. Eu me sentia acompanhado pelo locutores, imaginando-os em uma cabine distante, falando com um amigo invisível e anônimo. Eu não sentia falta da imagem da televisão. Aliás, acho até que ela me distraía – eu gostava mesmo era da voz falada. A prosódia, os pequenos trejeitos de fala, as escolhas características de palavras e expressões idiomáticas.

Eu era desses que assistia aos jogos na televisão com o rádio ligado do lado. O radialista me narrava o lance antes de ele aparecer na televisão, a onda do rádio era mais rápida que a da emissora televisiva. O rádio chegava antes, já me preparando para o que viria. O goleiro defendia o pênalti antes. O escanteio no rádio vinha mais cedo. Talvez o que me fascinava era uma certa sensação boba de controle sobre o mundo: através do rádio, eu era um pequeno aspirante a profeta.

Como quase tudo que acontece na infância, esse meu gosto pelo rádio não surgiu do nada.

Na casa dos meus avós paternos, em Caxias do Sul, havia um daqueles aparelhos que conjugavam rádio e toca-discos. Aparelho não, era um móvel da casa. As grandes caixas de som em ambos os lados. Ouvir rádio era um evento. Parava-se para escutar as notícias, para saber os resultados da rodada, para acompanhar os eventos locais.

Este meu avô também tinha gosto por ouvir rádio durante a noite. Não era um rádio-relógio moderno como o meu: era um desses rádios à pilha, cinzentos e machucados nas laterais devido às inevitáveis quedas. Tudo o que é portátil pode cair, afinal. Conta-se, aliás, que o meu avô era tão fascinado pelo rádio que desenvolveu uma habilidade ímpar: mesmo dormindo, quando percebia que as pilhas estavam enfraquecendo – aquele chiado triste que anuncia a desistência -, ele abria a portinhola traseira e substituia as seis pilhas AA por outras novas, que aguardavam diligentes na gaveta da mesa de cabeceira. Quando perguntado no dia seguinte, ele não lembrava de ter trocado as pilhas. Devia parecer um pequeno milagre o fato de o rádio estar sempre em funcionamento. Mas tinha-se que trocar as pilhas, certamente: o rádio era infinito, mas ainda assim podia acabar.

Este gosto pela palavra falada foi transmitido pelas gerações. Meu pai também dormia ouvindo rádio: colocava-o embaixo do travesseiro, para desgosto do sono da minha mãe. Mas, diferente de mim, ele gostava das estações de música, era um apreciador da FM. Ouvia especialmente as músicas gauchescas. Ainda que nunca tenha sido um estilo musical que aprecio, não são poucas as vezes que hoje em dia escuto “Desgarrados” para me deixar levar pelos ventos carregados de saudades. Era uma época em que fazíamos muitos planos e nem sabíamos que éramos felizes.

Essas ondas chegaram até mim de muitas formas. Eu fui uma criança que sofria com muitas otites – o ouvido parecia ser um órgão importante, pelo jeito. Lembro de noites em claro com dor de ouvido, sendo tranquilizado pelos meus pais zelosos, disfarçando o semblante preocupado com a ternura típica daqueles que precisam garantir que tudo vai ficar bem. Nessas noites, eu não ouvia rádio: eu não estava desamparado. Mas a paixão pela voz também me fez encontrar a Psicanálise e tudo aquilo que as palavras têm de potência. A fala tem textura, tem cor, tem densidade, tem gosto. As frases podem ser duras, ríspidas, ásperas, doces, delicadas… Tristeza é uma palavra cinza, raiva é vermelha, saudades é branco evanescente. Algumas palavras não têm cor, nos chegam como aquele sonho distante que foi esquecido assim que acordamos.

Hoje em dia, não tenho mais dores de ouvido.

E também não escuto mais rádio. Pelo menos não da maneira tradicional. Há dez anos me tornei assíduo ouvinte dessa declinação contemporânea do rádio, o podcast. Inclusive, essa é a melhor forma de explicar o que é um podcast: um programa de rádio na internet. As ondas mudam – das curtas que vêm pelo ar para as que navegamos na web -, mas o mar segue o mesmo. No começo, eu escutava especialmente os programas americanos como This American Life e Radiolab, ambos clássicos do formato. À medida que os brasileiros tomaram gosto por esta mídia, comecei a acompanhar as produções locais, especialmente as dedicadas ao cinema e à cultura em geral. Fui ouvinte assíduo do Cinema em Cena, que tinha como host o Pablo Vilaça (figura um tanto controversa hoje em dia). Pouco depois, chegaram nos Estados Unidos os podcasts narrativos, especialmente um chamado Serial, lançado em 2014, em que o caso do assassinato de uma jovem americana é reaberto por jornalistas investigativos convencidos de que Adnan Syed, ex-namorado da vítima, talvez não fosse realmente o culpado. Serial fez pelo podcast aquilo que Lost fez pelos seriados: chamou a atenção do grande público e dos patrocinadores. Este podcast foi um marco, elevando esta nova e diferente mídia a outro patamar. A chegada dos smartphones acabou popularizando definitivamente o consumo deste tipo de conteúdo. Hoje em dia é muito fácil escutar podcasts onde e quando se quiser, especialmente agora, que quase todos estão disponíveis em plataformas de streaming como o Spotify e o Deezer.

E há muita coisa boa sendo produzida. Para citar só os brasileiros:: Luz no Fim da Quarentena (da Revista Piauí), Foro de Teresina (também da Revista Piauí), Quarta Capa (da Editora Todavia), Rádio Companhia (da Companhia das Letras), 451 MHZ (da Revista Quatro Cinco Um) – estes três últimos sobre literatura. Também tem aqueles podcasts bons de ouvir pela da dinâmica dos apresentadores, como o Convite para ser adulto. Ou mesmo aqueles que tem só uma pessoa falando, como o genial Respondendo em voz alta, da Laurinha Lero ou o Poesia pros ouvidos, de leitura de poemas (cuja curadoria é feita pelo escritor Rodrigo Vianna). Dos documentais, vale muito a pena o Praia dos Ossos (da Rádio Novelo) e o Projeto Humanos (do Ivan Mizanzuk). Também entraram nessa onda os conglomerados jornalísticos como a Folha de São Paulo e o Sul21 (com a Colmeia, sua rede de podcasts). Como o leitor pode ver, opções não faltam, para todos os estilos, gostos e interesses.

Antes da pandemia, eu costumava ouvir podcasts na hora do almoço e nos deslocamentos pela cidade. O celular sempre ligado ao bluetooth do rádio do carro, esses amigos virtuais na carona por Porto Alegre. Agora, trabalhando de casa, tenho escutado lavando a louça, arrumando a cama, cozinhando. Vivendo neste mundo tão fora de sintonia, por vezes também tenho escutado à noite, antes de dormir. Talvez muitos estejamos nos sentindo um pouco como crianças desamparadas, à espera da voz afetuosa que nos diga que tudo vai ficar bem. Um tanto solitários e ansiosos, saudosos de uma voz que chega antes anunciando o que estava por vir.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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