Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr. (*)
Ontem celebramos o tradicional dia de finados. Há alguns séculos, no mundo ocidental, em diferentes culturas e civilizações, a humanidade resguardou uma data para lembrar, zelar e rezar por seus mortos. Assim como existem diversos ritos de sepultamento, são diferentes também as formas de cada um fazer a travessia de seus lutos, simbolizando as suas perdas. O respeito aos mortos, além de humanizar parece dar sustentação simbólica naquilo que se transmite entre gerações, reconhecendo a singular história de cada sujeito e preservando alguma memória afetiva desse laço.
Nesse ano, lidamos com perdas numa extensão, radicalidade e desamparo de forma inédita. Tamanha é sua proporção que o dia 02 de novembro já se demonstrou insuficiente para abarcar o dia de finados. Vivemos um período histórico único, 2020 será lembrando como o ano de milhares de mortes, uma etapa de nossas vidas em que precisamos nos distanciar para continuar vivendo. Desse modo, a noção de vulnerabilidade e as representações de vida e morte foram e serão redimensionadas.
Por outro lado, é inegável o quanto com a pandemia aprendemos muito, reinventamos outras vias de se relacionar, trabalhar e habitar o mundo. De acordo. Mas, o que quero observar diz respeito tanto a violência das mortes reais que ceifaram as vidas de mais de cento e sessenta mil brasileiros quanto a inúmeras tentativas de devastar simbolicamente as nossas esperanças de construir um país mais justo, humano e solidário.
Como resistir a esse neofascismo responsável por desprezar o valor da vida, cultivar a política do ódio, destruir o meio ambiente e negar a ciência? De que forma podemos unir forças para conter a voracidade capitalista que tende a desprezar os afetos e transformar tudo em mercadoria? Na tentativa de manter ativa há esperança de um mundo melhor, compartilho algumas contribuições do neurocientista Sidarta Ribeiro e do ex-presidente do Uruguai (2010-2015) Pepe Mujica, duas personalidades importantes no universo da pesquisa, da política e da dignidade humana.
Como eu havia mencionado, em 2020, fomos defrontamos com diversas formas de mortes. O recente lançamento [1] do livro de Sidarta Ribeiro, especialmente, no capítulo Ciência em Krakatoa, situa de maneira precisa as mortes simbólicas e reais ocorridas em diversas instâncias no Brasil. Conforme ele observa, desde “a conspiração que instalou Michel Temer na Presidência da República acelerou, de modo completamente irresponsável, o desmonte da ciência brasileira”. Isso que já era ruim, piorou, pois no governo atual “a ciência – como tantas esferas da sociedade – sofreu ataques cáusticos em todos os níveis. Os recursos para as áreas de ciência, tecnologia e inovação regrediram aos níveis de vinte anos atrás. Em 2020, 87% do FNDCT está contingenciado. Do total de 4,9 bilhões de reais, apenas 600 milhões de reais estarão de fato disponíveis. A parte do orçamento do CNPq destinada ao fomento científico encolheu 84,4% em 2020. O orçamento da Capes para 2020 é de 32% menor do que no ano anterior, com redução de 26% nos recursos para bolsas de ensino superior e de 51% nos destinados à capacitação e formas continuada na educação básica”.
Sidarta lembra também o enorme impacto na pós-graduação, haja vista o cancelamento de 7590 bolsas. A destituição da ciência, cultura e educação deu lugar a uma impostura negacionista que engana a população e persegue tanto instituições conceituadas quanto pesquisadores renomados no cenário internacional. Já no final de 2019, assistíamos a arquitetura perversa que além de desmentir os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) sobre as queimadas da Amazônia, levou a demissão do físico Ricardo Galvão então presidente do Inpe – “simplesmente por ter divulgado dados verdadeiros da real situação do desmatamento”. Na esteira desses absurdos, acompanhamos a apropriação da Embrapa por ruralistas, a venda da Embraer para a Boeing, assim como, a desestruturação do Inpi e do Inmetro. Sem falar no processo vertiginoso de desmonte do Ibama que deixou de multar e punir infratores.
Como se tudo isso não bastasse, o presidente da Fundação Cultural Palmares, detrata Zumbi e o Dia Nacional da Consciência Negra ao mesmo tempo em que o mandatário da nação é contra a vacina e prolifera a autorização para adquirir venenos interditados em países que se preocupam com a saúde do povo. Portanto, 2020 não será lembrado somente como a época do medo, da impotência, da quarentena, do anseio pelo raio de uma vacina, será o ano onde o governo tentou, de forma incansável e com armas desleais, legitimar o absurdo. Como destaca o neurocientista: “Estamos imersos numa guerra cultural regressiva de teor orwelliano, em que paz significa guerra, verdade significa mentira, amor significa tortura e abundância significa fome”. O dano de tudo isso pode comprometer o país nas próximas décadas, pois “corremos o risco de perder contato com a ciência mundial, até o ponto de já não conseguirmos nem ao menos compreender os avanços mais recentes”. A advertência do autor é um convite para despertar: “o pior que podemos fazer nesse momento é negar a catástrofe”.
Apesar dessa dura realidade, 2020 também nos faz renovar as esperanças, levando-nos a refletir sobre a importância de reservar tempo para os afetos. Nesse sentido, o evento realizado pelo Festival Livmundi – Diálogos: futuro que não tem bordas, realizado em 03/10/2020, contando com a participação de Noam Chomsky, Pepe Mujica e mediação de Aline Midlej – foi um verdadeiro alento. Com o propósito de pensar as diferenças como qualidades e não fronteiras que cerceiam, buscou-se analisar novas possibilidades de organização com a natureza e o outro. Temas como o imperativo de novo acordo verde, o aquecimento global, os fluxos de refugiados e a crise existencial fizeram parte do diálogo que parecia seguir o propósito de chamar a atenção para a urgência de um novo pacto global.
Foram diversas as questões relevantes nesse encontro, de modo que não poderei desenvolvê-las nesse texto. Por isso, optei por destacar algumas das reflexões propostas por Pepe Mujica, aquele que quando escuto, nunca deixo de lembrar de uma frase resgatada por Lacan na abertura de seus Escritos: O estilo é o homem. Para Mujica, a crise ecológica é consequência da impotência política de tomar medidas e enfrentar interesses. Mais do que isso, pois “a cultura do consumo impregnou nas pessoas e é através dela que o capitalismo exerce o seu poder, o que disso resulta, entre outras coisas, é a falta de tempo humano para ser investido nos afetos”. Lidar com isso requer se equilibrar diante dos desafios do nosso tempo, como sublinha Pepe: “aprender a viver com sobriedade sem cair na loucura que o capitalismo propõe é quase revolucionário, porque a única coisa que você questiona é não comprar”. Ele observa o quanto a lógica capitalista aprisiona, impedindo-nos de gastar o tempo para cultivar os afetos, pois ao multiplicar no infinito a necessidade material teremos que escravizar as nossas vidas para cobrir essas necessidades.
Mujica resume dessa forma: “Eu não quero que falte nada para os meus filhos, mas aí falto eu para eles porque não tenho tempo. Não tenho tempo humano para os meus filhos porque a conta que eu tenho que pagar ela me escraviza e tenho que gastar todo o tempo da minha vida para conseguir meios materiais para pagar as contas que tenho. Isso é funcional para o capitalismo”.
Estão enganados aqueles que interpretam isso como algum desejo de resgate nostálgico da era pré-industrial, a imagem a seguir é auto explicativa: “é como atravessar uma avenida cheia de carros, não dá para evitar que os carros passem, mas precisamos aprender a desviar para que eles não nos atropelem”. Eis aí um exercício de sabedoria, aprender a desviar daquilo que insiste em nos atropelar. Além disso, ele esboça dois outros fios de esperança, a simplicidade e os jovens universitários, aqueles que reconhece como os trabalhadores imprescindíveis do futuro.
No dia 20 de outubro Pepe Mujica se despediu do parlamento uruguaio, dizendo: “Tenho que agradecer por tanto reconhecimento. Devo agradecer porque há um tempo para chegar e outro para ir-se na vida”. Verdadeiro símbolo do combate a ditadura [2] no seu país e no mundo, com a dignidade que lhe é própria, refere: “Há décadas não cultivo o ódio no meu jardim. O ódio acaba sendo estúpido. Na política existem causas. Homens e mulheres passam. Algumas causas sobrevivem e precisam ser transformadas. A única coisa permanente é a mudança”. São palavras proferidas por alguém que passou mais de uma década preso e sentiu-se verdadeiramente livre quando descobriu a ternura pela vida e o respeito pelo ser humano.
(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Instituto APPOA, Doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS, autor do livro Perversões: o desejo do analista em questão. Curitiba: Editora Appris, 2019.
Notas
[1] Ribeiro, Sidarta. Limiar: ciência e vida contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
[2] Ver documentário da Nextflix: El Pepe Una Vida Suprema.
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