![Passagem para o Ocidente: Somos todos migrantes através do tempo](https://sul21.com.br/wp-content/uploads/2021/03/20210215-luciaserranopereira-scaled-1-450x300.jpg)
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Lucia Serrano Pereira (*)
Passagem para o Ocidente, primeira leitura de férias. Já tinha me encantado com Mohsin Hamid desde o seu O fundamentalista relutante, agora me encontro acompanhando a história das travessias de Nadia e Saeed, trânsitos em um mundo que joga com o muito longínquo e ao mesmo tempo tão próximo. Trama de tempo e espaço que produzem saltos nos incríveis portais que nos permitem cruzar magicamente do suposto Paquistão ( país natal de Hamid, mas que na trama poderia ser outro ) para a ilha de Míkonos, dali para Londres, de lá para Marin, ao lado de São Francisco, Califórnia. O planeta todo estava mudando, os portais que inicialmente eram uns dois ou três identificados ( e que por isso poderiam recolher de volta os que cruzavam terminando precocemente com o sonho de um mundo melhor ) agora se multiplicavam, fora de controle (felizmente).
Tudo começa com uma história de amor, Nadia e Saeed se conhecem em uma sala de aula, ela coberta pelo manto negro da cabeça aos pés, ele barba rala (não a cheia dos militantes da fé). Ela afastada da família por ser mulher que quis ir morar sozinha; ele com os pais, mais perto da religião ( mas não ao modo dos fundamentalistas). E o encontro vai acontecendo em um cotidiano – os jovens que buscam viver, mesmo nessas cidades cambaleando à beira do abismo, como diz o narrador. Não é assim que as coisas acontecem nas cidades? Se pergunta. “Por um momento estamos entretidos com nossos afazeres habituais e no momento seguinte estamos morrendo…”.
Mas ele atravessam. Tempos de violência, a cidade dividida entre os moradores e os radicais da fé que começam a tomar conta dos bairros, as bombas nos lugares de circulação, os impedimentos de cruzar livremente, a estocagem de alimentos, a eletricidade e a água que são desligadas dos bairros, não tem mais telefonia. Só a noite e a barbarie, o medo e o pânico. As mortes.
Mas eles se buscam e se encontram. Um baseado no terraço das noite, e algo de sexo, pois ele não podia se entregar de todo ao sexual antes de casar. Já a burca que ela usava não tinha muito a ver com alguma convicção.
A mãe de Saeed morre por bala perdida em um confronto de rua. A vida ali se tornando insuportável, Nadia e Saeed vão buscar a saída, mesmo que com muito perigo. Ele com mais tristeza de deixar seu pai, tradições, sua cidade. Quer ir, desesperadamente, mas se pudesse também pensar em voltar um dia… Ela mais desejosa de diferença, do que encontrar pela frente, e disposta, talvez, a não voltar nunca mais. Dizem que para sair se paga a uns homens que controlam os portais. Portais? Aqui a surpresa do livro que trabalha as passagens: lugares pulsantes de espaço e de tempo.
“… a passagem era tanto como morrer como estar nascendo”. Nadia tinha a experiência de uma espécie de desfalecimento quando entrou naquele buraco ao fundo de um consultório de dentista abandonado, dentro daqueles prédios também desertos em sua cidade em escombros. Entrou na escuridão, vão seguindo tateando para o outro lado, avançando e lutando para sair, Saeed vinha atrás, ela trata de se espremer para frente para dar lugar a ele. Por fim um chão úmido onde se encontra deitada, ela consegue encher de ar os pulmões; nesse momento percebe as pias e os espelhos, as portas, portas normais depois de tudo, e uma brisa fria em suas faces, e o cheiro de maresia. E viram do banheiro uma estreita faixa de terra, parecia milagroso, estavam em um clube de praia.
Do (suposto) Paquistão para Míkonos, o primeiro portal. Imagino Walter Benjamin siderado com Hamid, ele que trabalhou tanto a partir das passagens, na relação com a cidade – com as passagens urbanas que diziam do fora e do dentro, da rua e da casa, do fascínio e do perigo, mas principalmente das passagens dos tempos na articulação do espaço da mudança no adentrar outros tempos. Para Benjamin era a modernidade e seu choque.
Com Passagem para o Ocidente, encontro próximo com questões do nosso tempo recente. De vida e morte, de como não só sobreviver, mas de sustentar desejos, perspectiva, sonhos, um lugar no mundo com os outros. Nos faz pensar em como produzirmos também portais em um mundo pós pandêmico que já é outro, onde nos encontramos com a sensação paradoxal de que estamos em parte confinados, por vezes sobreviventes temporários no meio de uma guerra, e ao mesmo tempo transitando ( buscando o fugaz de alguma tranquilidade). Costurando todo o tempo o que é possível no trabalho de luto para poder estar na vida.
Onde nos situamos? Somos refugiados, em parte, a cada vez em que nos deparamos com as controladorias de portais? Saeed e Nadia vivem por longos períodos assim, depois de cruzar um portal. Já não eram perseguidos diretamente como em sua cidade, tentavam recompor minimamente as condições de vida, mas coletivamente viviam o conflito, a tensão social, a violência desmedida e assustadoramente sem sentido, a desorientação.
A pressão sobre esses que falam outra língua, que ocupam os parques ou os bairros, que gozam de outra maneira, que desarticulam a acomodação de antes, que são estranhos. Mas em cada lugar encontravam, também, aqueles com quem celebrar, ou rezar na tradição dos lugares que deixaram, ou se deixar tocar pela experiência do outro lugar tão diferente. Poder contar do que atravessou, ser escutado, acolhido.
Há uns dois anos em Barcelona, na boca do metrô, um rapaz da ACNUR me pede para responder uma pesquisa rápida. Conversamos, e ele me pergunta se eu sabia que hoje tem campos de refugiados nos quais os que nasceram lá alcançam a idade de 24 anos. Perplexidade. Uma geração inteira, já, criada em um lugar tão profundamente marcada pelo controle das portas.
Quando se diz “refugiar”, o termo carrega, em alguma medida, a ameaça, o medo, o desamparo. De certa forma portaremos algo disso pra sempre, é da nossa condição mais íntima humana desamparada frente ao que irrompe no mundo, onde além de tudo ora buscamos, ora tememos que haja um outro real ou suposto para incidir sobre nosso percurso, para o bem ou para o mal. Mas migrar, se deslocar, encontrar lugares de trânsito e chegada pelos sonhos, anseios, apostas, pode dizer de um deslocamento diferente.
“Somos todos migrantes através do tempo” nos diz Mohsin Hamid. Que forte. E isso leva junto uma beleza, uma abertura. Onde quer que se esteja, poder estar perto deste movimento. Trama singular de espaço e tempo, (de novo a aura benjaminiana nos envolve). Mesmo que nos deslocamentos algo de nós tenha que dar conta do se refugiar, junto com o poder se mover.
A ficção dos portais das passagens para o ocidente nos leva onde, das formas mais distintas e surpreendentes, se pode cruzar o mundo enquanto sujeitos.
(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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