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8 de setembro de 2012
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10:04

Ponto Cego?

Por
Sul 21
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Um ponto que, não sendo visto, ali está; algo oculto ao olhar rápido e descuidado Estranho título para uma mostra de artes visuais, no entanto, possivelmente não houvesse melhor definição para o conjunto de trabalhos que se encontra exposto de 5 de setembro a 11 de novembro, no Santander Cultural, em Porto Alegre. Miguel Rio Branco conduz o espectador a ver e, ao mesmo tempo, tomar consciência de que algo lhe escapa, que é impossível captar todas as nuanças do que a ele se apresenta. São imagens que executam um trajeto não linear, uma espécie de desvio e de retorno, fugindo ao lugar comum dos caminhos fáceis e usuais. Uma condição que permite falar em um “Ponto Cego”.

Esta é uma mostra que se constitui como uma experiência eminentemente sensorial, ocupando, completamente, os dois pisos deste espaço cultural. Desde a entrada, o visitante é envolvido por uma luz difusa, que dificulta qualquer visão mais objetiva ou analítica, sendo jogado em um ambiente que o engole em todos os sentidos. Para a visitação, não há necessidade de guia ou fichas técnicas nas obras, ela pode ser uma rica experiência individual e solitária. Só é necessário deixar-se envolver ou lutar com cada imagem, som ou ambiente, percebendo que tudo que ali se encontra faz parte de uma mesma viagem. Essa sugestão de visita solitária pode ser um ponto de partida, pois o Santander dispõe de uma competente equipe de mediadores que poderão oportunizar inúmeras outras possibilidades de acesso às obras, e que vale a pena conferir.

A viagem proposta por Miguel do Rio Branco, um dos mais importantes artistas brasileiros, se faz em diferentes caminhos. Viagem por vários pontos do mundo, que se tocam de tal maneira que, não interessa onde foi feita cada uma das inúmeras fotos que ali se encontram. Os lugares se mesclam em uma humanidade planetária. Viagem pelo tempo, na medida em que várias épocas se cruzam, sem que suas datas signifiquem mudanças ou diferenças, uma temporalidade fica suspensa nas imagens. Viagem estética, em que o artista perpassa os mais diversos meios e categorias artísticas, da fotografia, sua mais conhecida produção, à pintura, à instalação e ao vídeo, para citar as mais evidentes. Um continuum visual conduz o olhar do espectador.

Filho de diplomata, Miguel Rio Branco nasceu na Espanha e teve como cotidiano deslocamentos por diferentes territórios, e ele fez disso sua escola e sua poética. Com um olhar arguto, o artista penetra no tecido social encontrando aquelas imagens que não são vistas facilmente pelo cidadão comum. Seus personagens são párias, desviantes e desviados, que fazem refletir sobre a sociedade em que se vive. Não que a obra desse artista seja de denúncia específica ou politicamente engajada. Há nela uma fascinação pelo submundo, que não critica a sua existência, mas evidencia e exalta o humano ali existente. Nessa tarefa, ele embarca no cotidiano dessas comunidades, focando situações singelas ou obscenas. Suas imagens são de uma violência descarnada, aquela da qual não é possível fugir, mas com a qual a convivência não se faz dolorosa. A sexualidade dos corpos é tratada sem esteticismos, com a objetividade de uma navalha que fere e expõe as entranhas. É uma mostra de imagens fortes, que atraem e repelem, onde o belo e o grotesco se fundem de forma ambígua, mas poética.

Nas sociedades tradicionais, as angústias da psique humana em relação às agruras da vida eram abraçadas pela religião. No mundo ocidental contemporâneo, a laicização generalizada da ordem social impôs novas funções à arte enquanto função simbólica. O universo de formas visuais em suspensão e a vivência criativa podem se opor ao vazio, apontando na arte, enquanto instituição social, uma possibilidade de permanência e humanização. Nesse sentido, Miguel Rio Branco assume uma arte que não tenta dar respostas, nem afastar os medos ou negá-los pelo recalcamento. Sua proposta é extrair a beleza em qualquer circunstância, sem cair em esteticismos edulcorantes. Os corpos se prestam como palco das ações, permanecendo como uma presença marcadamente identificada, nos quais a violência e o desejo são as linhas de força de uma trajetória. Ele usa a presença do corpo para realizar uma suspensão poética da violência social.

Afirmar que não há esteticismo na obra de Miguel Rio Branco pode ser contraditório com a qualidade técnica de suas fotos, dignas de quem foi correspondente da famosa agência Magnum. Mas ele vai além, consegue libertar-se do virtuosismo técnico, contrapondo imagens desfocadas, esmaecidas ou fora de enquadramento, fazendo valer mais a criação de um pensamento. Seu propósito é detonar o conceito da fotografia narrativa, ligada a um local ou tempo, trabalhando cada vez mais com o entrelaçamento dos meios expressivos.

Segundo o artista, a ideia desta exposição, que incorpora vários momentos de sua trajetória artística, foi do curador, Paulo Herkenhoff, que propôs levar seu ateliê para o espaço museográfico. Na forma como foi organizada a mostra, não há necessidade de o visitante saber datas, locais ou técnicas de cada um dos trabalhos apresentados. A coerência e continuidade do conjunto fazem com que não se distingam necessariamente um do outro. Não interessa saber onde começa ou termina cada um deles, eles se rebatem entre si e reverberam. Assim, não há um conceito norteador da mostra, ele aparece pelo desenvolvimento da própria obra do artista.

http://youtu.be/yVUJOl0H91E

O curador comenta em seu texto “A linguagem da cor-luz persegue o obscuro no desejo… para expô-lo à flor da pele”. Curiosamente, segundo relato do artista, a cor veio para seu trabalho por acaso. Nos anos 80, um incêndio destruiu quase todos os seus negativos em preto e branco; ele, que vivia em trânsito resolveu passar a fotografar com slide, por ser mais prático, evitando os transtornos da revelação em estúdio. No entanto, seus trabalhos permanecem, em essência, monocromáticos, a cor é luz, que ilumina ou oculta o texto visual, concorrendo para que sua obra transmita vida e emoção, em várias camadas de informações.

Encontra-se, no âmbito da arte um movimento constante de tentar o preenchimento do vazio existencial, seja com uma concepção idealizada do mundo, seja com uma abordagem poética do real. As inúmeras interpretações sugeridas pelas imagens, sons e tactilidade da obra de Miguel Rio Branco não apontam idealizações, elas instauram um sistema de relações que ressignificam o cotidiano. Uma exposição imperdível para aqueles que aceitam o desafio de uma realidade nua e crua, mas aberta à imaginação. Convite de um artista que combate o olhar eminentemente racional, para resguardar a suspensão, evitando respostas definitivas ou esclarecimentos superficiais.


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