Colunas
|
4 de maio de 2012
|
19:00

A militante e a protagonista

Por
Sul 21
[email protected]

Cíntia olhou para a colega de quarto da maternidade e tascou a pergunta: nasceu de parto normal ou cesariana?

Ah, foi normal, respondeu Laura, com ares de pouco caso.

Sério, os índices estão tão baixos…Como foi? Lindo, violento, como foi seu parto?

Foi normal, as dores começaram desde sábado, fui levando, fiz um bolo, não dava para saber se estava na hora porque era minha primeira vez. Fui adiando de vir, daí segunda, bem no feriado, adiei ao máximo ainda, mas não deu mais, já cheguei sentindo a cabeça, senti aquela bolinha, imaginei que era bunda ou cabeça, que era melhor que fosse cabeça, senti uns pelinhos, era cabeça, aí mesmo que relaxei e ela nasceu assim, a minha Maria.

Sério, não fizeram episiotomia nem nada?

Epi o quê?

Episiotomia, um corte na lateral da sua vagina.

Ah, o médico veio com aquela tesoura, mas ele não conseguiu cortar porque eu não tirei a mão da frente sabe, ele não pôde fazer nada, eu fiquei no comando e mandei que esperasse, falei que já ia sair, eu senti sabe, só senti, vinham umas forças e senti que não dava para ele fazer mais nada, aquilo era coisa minha, qualquer coisa que ele fizesse eu sabia que ia doer mais, que só ia piorar, essas coisas de mulher, sabe, essas coisas a gente nem deveria precisar de médico, eu só vim mesmo porque o nenê poderia precisar de ajuda, hoje tem tanta doença né, mas agora mesmo, eu preferia até ir embora de volta para casa, estamos tão bem. E tu, como foi contigo?

Ah, foi cesariana…Uma luta…

É dizem que é melhor né, que dói menos, as madames no Hospital Moninhos quase todas escolhem cesariana, eu soube que dá até para agendar, marcar dia e hora, que elas fazem as unhas, se preparam, tudo bacana, apartamento particular, é tipo uma festa, com uísque e tudo, a cesariana agendada. No meu caso até que gostei do parto normal, não foi tão ruim, mas nem teria como agendar, dar festa de nascimento, quando muito vai dar para fazer um bolinho quando ela fizer um ano.

Ah Laura, imagine, tu tiveste um atendimento luxuoso, muita sorte e talento seu parir assim; as madames do Moninhos são muito desinformadas, colocam os bebês em risco ao agendar cesarianas, acaba que aumenta o índice de nascimentos prematuros e quem fatura mesmo em cima disso é todo esse sistema de doenças, exames, remédios, medicalização do parto e do nascimento. Isso tudo deveria ser investigado e denunciado ao Ministério Público, o ideal é um parto como o seu, sem intervenções. Olha, eu queria muito o parto normal, fiz ioga para gestantes, contratei uma doula, li muito, participei de grupos de discussão na internet, me precavi contra o sistema, eu lutei, eu sei que pelo menos eu fui guerreira, mas não deu, na hora H não deu, mas pelo menos não foi uma desnecessária.

Tu falas difícil, mas porque querias tanto o parto normal? O que aconteceu? Olha não chora, não fica triste, o importante é que nossos bebezinhos já aprenderam a mamar e amanhã vamos embora. Olha, não é tão bom assim o parto normal, até dói um pouco, parece que a gente vai partir ao meio, é emoção demais, tive até vergonha porque chorei ali mesmo na frente de todo mundo, senti uma coisa tão forte, logo eu que nunca choro.

Pois é, Laura, eu queria tanto, são muitos os motivos, eu já estava com 41 semanas e nada, aí começaram uns sintomas e fiquei tão alegre e também nervosa, chamei a doula e ela veio, ficamos sete horas em casa, eu relaxando, ela me massageou muito, foi até bom, mas eu sentia tanto, chorava tanto que resolvemos vir para o hospital e então foi constatado; só estava com 1 cm de dilatação.

Ah entendo, a delatação já ouvi falar que pode ser um problema..Acho que não tive esse problema e essa coisa de semanas também não soube a quantas andava.

É Dilatação, com certeza, certeza mesmo, tu dilataste o suficiente e pelo jeito foi rápido.

Ah não, até que doeu viu, eu queria essa moça doce aí, essa que faz massagens, ah bem que eu podia ter tido uma dessas lá em casa desde sábado, mas fiquei tão encafifada comigo mesma tentado adivinhar se era ou se não era o dia do nascimento da menina que nunquinha ia avisar alguém.

Tu não falaste para teu marido, para a tua mãe, para ninguém, nem no domingo?

Eu? Credo, deusmelivre, aqueles lá iam me trazer para cá na marra e eu com aquele medo todo de vir, fiquei lá me acalmando, mas pavor mesmo bateu quando vi o melecão, na hora lembrei da Juquinha, a vaca da minha madrinha, quando ela foi parir antes saiu um melecão bem parecido. Daí eu pensei, tô frita, não vou poder escapar.

Ah sei, é o tampão mucoso, isso mesmo, muito parecido entre os mamíferos o processo de parto…Então, Laura, só sei que chegando aqui as dores aumentaram, o médico ficou bem sem paciência, as enfermeiras começaram a fazer toque de hora em hora, meu marido não teve acesso à sala de pré-parto, aquilo tudo, o ambiente, as luzes, aquelas pessoas todas, a impessoalidade do médico, a pressa, foi tudo me deixando muito mal e a dilatação estacionou em 6 cm por 4 horas. Tudo parou, eu sinto que foi o externo, como se o externo todo entrasse dentro de mim me congelando. Como foi para ti isso tudo?

Olha, Cíntia, eu não gosto daqui, detesto cheiro de hospital, acho que criança nem deveria nascer assim em lugar que no outro andar tem gente doente, quero muito sair, mas ali, na hora da Mariazinha nascer, me sentia como se fosse uma gigante, eles eram todos pequeninos, um hospitalzinho com seus microbiozinhos, aquele mediquinho recuando com a tesoura, morrendo de medo que eu parisse o nenê na cara dele, as enfermeirinhas assustadas correndo daqui para lá…Minha Mariazinha e eu, sabe, a gente estava ali com uma força de maremoto, a gente podia derrubar esse hospital inteiro só com aquela força que vinha de dentro. Não vi nada, não ouvi nada, mas acho que eles nos viram e ouviram bem porque ficaram quietos, a gente aquietou eles todos, nem sei explicar como foi isso, eles nem se moveram, só ficaram nos olhando, era como se a Maria e eu soubéssemos até mais do que eles, os doutores, acredita?

Hahaha acredito já ouvi falar desse momento do parto, chama-se Transição…E me diz uma coisa, tu não sentiu medo que alguma coisa não desse certo?

Tá brincando? Já te falei, eu amarguei um medo enorme desde sábado, eu me encolhia no canto do quarto igual criança quando faz coisa errada e sabe que vai precisar contar, pedir ajuda…Essa tal de dilatação aí, acho que já estava comigo desde sábado, era eu aquietar o medo e o trem se afrouxava dentro de mim e então eu travava de novo, segurando a dilatação no medo, até que não deu mais. Agora, aqui no hospital meu único medo era precisar dos médicos, quase morrer, a Mariazinha quase morrer, eu sabia que se precisasse deles a coisa era grave. Minha avó sempre falava, quando uma doença dá precisão de médico tem que mexer os tutano.

Laura, olha…Aprendi tanto contigo, curioso nosso encontro só agora, após a minha cesariana, com certeza meu erro foi vir para o hospital e tão cedo, cedo demais, não relaxei o suficiente, não me entreguei, tu me ensinaste tanto, acho até que da próxima vez vou ter um parto com toda tranquilidade e em casa, um domiciliar sem medo. Tu devias tentar!

Vixi, sério? Em casa? Sem nem chamar os bombeiros? Sei não se eu daria conta, vou ter que ver com o medo.

O parto natural no Brasil ainda é um mito. Após mais de meio século de cultura pró-cesariana, muitas brasileiras ignoram os benefícios do parto natural, se submetem a cesarianas eletivas expondo os bebês ao risco de nascer prematuramente, com baixo peso e problemas cardiorrespiratórios. Parir bem no Brasil, sem violência obstétrica, sem episiotomia, sem intervenções desnecessárias é uma raridade, sorte de uma minoria de mulheres.

Nos últimos anos redes de mulheres que apoiam, defendem e lutam pelo direito de parir com dignidade, multiplicaram-se. Infelizmente a ferida social, psíquica e cultural herdada historicamente nem sempre beneficia essas lutadoras, por mais que se informem e transmitam os conhecimentos com bases em evidências científicas.

Cláudia Rodrigues é jornalista e terapeuta reichiana


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora