Notícias
|
17 de março de 2012
|
09:40

Virginia Woolf, Peter Walsh e a Mrs. Dalloway de cada um

Por
Sul 21
[email protected]
A edição de Mrs. Dalloway da Nova Fronteira, com tradução de Mario Quintana

Nikelen Witter
Especial para o Sul21

Mrs. Dalloway tem quase tantos adoradores quanto Virgínia Woolf. Talvez, até mais. Algo nas palavras cuidadosamente pensadas de sua autora parece mexer profundamente com as pessoas que leem este romance. A beleza poética de cada parágrafo desliza na mente, fala ao que não nos é visível, sensibiliza. De fato, não é uma prosa completamente ligada ao consciente, especialmente nas passagens entre um e outro personagem. Nestas, há uma espécie de cortina, ora de fogo, ora de água, ora de fumaça, que fortalece ou suaviza o impacto de mudar de um fluxo de consciência a outro.

É certo que cada leitor há de constituir sua própria Mrs. Dalloway, bem como sua própria Virginia Woolf. A autora, para muitos, parece ela própria convertida em personagem, dentro e fora de sua obra. As semelhanças entre a trajetória da escritora e o livro publicado em 1925 sugerem a muitos leitores um acesso direto ao personagem oculto que é a narradora-escritora. Esta percepção é tão corrente e aceita que rendeu o romance As Horas (depois convertido em filme) que se utiliza do primeiro título pensado por Virginia para seu romance.

Nicole Kidman no filme As Horas | Foto: Divulgação

Não vi o filme oscarizado, nem li o romance que lhe deu origem. De fato, não quis ler nada que me dissesse sobre o que tratava Mrs. Dalloway antes de ler o livro. Terminada a leitura, procurei algumas resenhas no Google sem muito afinco. A maioria ressaltou pontos muito semelhantes. Devo ter parado minhas buscas no terceiro site que entrei. Bem claro que o primeiro foi a Wikipedia, mas incomodou-me que as resenhas de Mrs. Dalloway fossem tão semelhantes — era como se houvesse um protocolo sobre o que devesse ser dito a respeito do livro. As resenhas ressaltavam o estilo, o uso do fluxo de consciência, as similaridades com a autora, a questão da superficialidade da vida em sociedade, o suicídio (não a angústia ou a depressão), as similaridades com a vida da autora, as relações homossexuais, a passagem do tempo, a frivolidade das horas mortas do dia e… já falei que eles comentam muito sobre a similaridade do romance com a vida da autora?

Deixarei de lado o protocolo, não por sua falta de interesse, apenas porque já se falou sobre isso. Ficarei com as coisas que me chamaram a atenção e até com parágrafos que me marcaram fortemente. Então, caso você não tenha lido e não goste de saber a história antes de fazê-lo, abandone este texto neste ponto, vá ler o livro – que recomendo fortemente – e, depois, se lhe aprover, retorne.

Virginia: uma feminista na alta classe inglesa

Começo com a história de amor e, obviamente, com Peter Walsh. Apaixonei-me por Peter à primeira vista e odiei Clarissa Dalloway no mesmo parágrafo. Que orgulho tolo fê-la perdê-lo. Mesmo sem nunca ter retribuído seu amor na mesma intensidade, Peter não é um homem a ser desperdiçado sem dor. E Clarissa, no fundo, lamenta. Porém, Clarissa é uma inglesa, diz o romance, mas não só. Ela é da alta classe inglesa, e esta não é uma alta classe qualquer, é aquela forjada pelo Império; cheia de mesuras e auto-importância que somente a mais forte das contenções pode manter. Uma contenção que Peter Walsh não tem. Aos 52 anos, ele ainda chora o amor perdido aos 20 e a filha que poderia ser sua. É um cavalheiro que se coloca a resgatar uma jovem de um casamento infeliz e assumir seus filhos (com os ganhos disso, obviamente), porém, não tem carreira, emprego, ou qualquer das coisas respeitáveis que Clarissa tanto valoriza. Mesmo com toda a angústia que cada hora do longo dia de reminiscências vai lhe causando, o fato é que Clarissa adora ser Mrs. Dalloway. Ela não consegue imaginar-se como Mrs. Walsh, mesmo sabendo que isso poderia significar ser mais feliz.

Na casa dos 50 anos, os protagonistas avaliam as vidas, mas, fazem mais que isso. Eles lutam contra um sentimento de juventude que insiste em acompanhá-los, juntamente com esta percepção – nova para eles – que estão velhos e já dobram o cabo dos bons dias. Clarissa se angustia com as horas vazias dos dias enquanto mergulha nas preocupações fúteis de uma dama de sociedade. Peter se angustia por precisar de um lugar para envelhecer, porém, o lugar que ele quer é, e será sempre, Clarissa.

Duas coisas aí me chamaram a atenção. A primeira é o fato de Clarissa estar num espectro que me recordou passagens de Um teto todo seu. Ela é a mulher apagada pelo casamento. Sua maturidade é uma mescla do que ela poderia ter sido, do que perdeu e do que ela mantém. Permanece adorável a todos, perfeita nos gestos de grande dama, mas os que a conheceram no passado sabem que isto não é mais que uma pálida marionete da apaixonante Clarissa dos tempos idos. Este casamento que a consome é uma morte em vida, foi o que me pareceu ver Woolf repetir em ideia e exemplo nestes dois livros. O casamento, porém, atua diferente sobre os homens. Richard Dalloway (que protagoniza um delicioso momento intertextual do livro) melhora. Peter, a quem o casamento não ocorreu, permanece. Hugh Witbread desenvolve o resto de sua personalidade sebosa, nojenta e lambedora de botas, vivendo em torno de uma mulher sempre doentia ou (entrevê-se) sempre em fuga da vida medíocre com o marido.

Gabriel García Márquez: reverente à escritora que mais o influenciou

O segundo ponto foi a lembrança de que Gabriel García Márquez credita a Woolf uma de suas fortes influências literárias. De imediato Florentino Ariza, Fermina Daza e seus 50 anos de amor e espera me vieram à mente. A associação pode ser só minha, mas senti-me, novamente, próxima de O Amor nos tempos do Cólera.

A outra história de amor de Clarissa, entre ela e Sally Seton é bastante comentada por quem lê o livro, mas de novo fico a pensar se o motivo deste interesse é o livro ou a vida da autora. No romance, Sally e Clarissa se enamoram, beijam-se, mas jamais parecem pensar em tornar aquilo claro ou público. Clarissa não perderia sua posição, nem por Sally. E Sally acaba, com o passar dos anos, tornando-se mais próxima de Clarissa (mesmo que não de forma física). Ela se casa, tem cinco filhos e o sucesso financeiro do marido vindo das classes baixas (o que a orgulha, mas o empana para os senhores do Império) faz dela uma lady. Peter quase não acredita: a cáustica e contestadora Sally, uma lady, e, pior de tudo, confortável no papel.

A presença do Império na Índia: subjacente a toda conversa

A questão do Império é bem presente no livro, subjaz a tudo e a todas as vidas. A Índia parece mais próxima que a Irlanda ou a Escócia. É como se ocupasse o lugar que estas ocuparam no passado. A Índia preocupa. Está nas conversas, nas chegadas, nas partidas, nos estudantes de pele azeitonada quem vem aprender com os ingleses o que é civilização. A Índia circula por cartas e é o assunto a se puxar com o Primeiro Ministro. O Império é algo perene da primeira a última página. Está no carro oficial que abre o livro e na empáfia dos personagens: eles têm um rei, que é o imperador de terras além da imaginação. Todos partilham disso em maior ou menor grau. Os personagens de Woolf navegam nesta corrente e se deixam deslumbrar por ela, menos, claro, Peter Walsh. Ele viveu na Índia, ele sabe o que é o Império para além de seu esplendor. Não, o admirável Peter não se engana com as pompas imperiais inglesas e sua tola importância.

Assim como o Império, também a Primeira Guerra é uma presença. Ela acompanha um personagem paralelo a Clarissa, Septimus Warren Smith, o jovem veterano. Traumatizado, deprimido, afundando lentamente na loucura, ele se culpa. Ora pela morte de um amigo no conflito, ora pelo intempestivo casamento com uma jovem italiana e o sofrimento que agora causa nela. Rezia, a esposa, sofre a loucura do marido e o expatriamento. Ela é e será sempre uma estrangeira, o que aumenta sua solidão de forma quase insuportável, enquanto, desesperada, ela tenta inutilmente salvar o homem que ama. Mas, perde-o. Primeiro para a doença, depois para os médicos e, por fim, para a memória da guerra mais traumática do século XX (até, claro, virem as outras).

Woolf dois anos antes da publicalção de Mrs. Dalloway

Os médicos merecem um capítulo à parte. São detestáveis tanto aos doentes, quanto aos seus cuidadores, e até pelos que os conhecem de passagem. Os médicos, ao menos na figura de Sir Willian Bradshaw, são aqueles que roubam o poder que cada um tem sobre si mesmo, usurpam as decisões sobre nosso corpo e mente. Em suma, eles têm poder demais e são odiosos por isso.

O feminino é também uma questão cara ao livro, mesmo que isso seja feito na forma determinadamente não militante de Virginia. Sally Seton não é, nem de longe, a única mulher com quem as relações de Clarissa geram tensões (para o bem ou para o mal). Temos a ama de sua filha, a pobre (e isso é um defeito quase pessoal) e raivosa Miss Killman. Clarissa a acusa constantemente de ter-lhe roubado a filha, mas não é apenas isso. O ódio que se estabelece entre essas duas mulheres é mais profundo. A Clarissa chega a ser vital. E ela reconhece isso. Em seu ódio por Miss Kilman, ela se sente viva, pronta a fazer algo, ela ferve! Nas relações superficiais e teatrais de sua vida, Miss Kilman é seu oásis de Verdade. Ali, no ódio por aquela mulher, no enfrentamento, Clarissa existe, é real. É a velha (jovem) Clarissa novamente.

Já Miss Kilman tem um ódio de classe, um ódio de gênero, um ódio religiosamente alimentado por Clarissa, que é tudo que ela não é e aprendeu a detestar por lhe ser inalcançável.

Amargurada e raivosa, Miss Kilman entrara numa igreja, fazia agora um ano e três meses. Ouvira o sermão do reverendo Whittaker; cantavam os meninos do coro; vira apagarem-se as luzes solenes; e fosse a música ou as vozes (ela própria, quando sozinha, à noite, achava consolo no violino; era o som mais lastimável que tinha ouvido), o certo é que os iracundos sentimentos que lhe fervilhavam no íntimo se haviam apaziguado quando sentara, e tinha chorado copiosamente, e fora visitar Mr. Wittaker em sua residência particular, em Kensington. Era a mão de Deus, disse-lhe ele. O Senhor havia lhe mostrado o caminho. De modo que agora, quando lhe vinham aqueles exaltados e penosos sentimentos, aquele ódio à Mrs. Dalloway, aquele rancor contra o mundo, ela pensava em Deus. (p.118).

Woolf, presente nos muros ingleses | Foto: Brocco Lee

Elisabeth Dalloway também atormenta Clarissa. Ao observar a passagem de criança a moça, a protagonista se surpreende em não ver-se em nada na filha e se depara com uma estranha. Elisabeth é adorável, bela, mas não é uma versão do que sua mãe foi no passado. A jovem é silenciosa, fechada, e faz escolhas que a mãe não compreende. Prefere o campo e os animais à vida frívola de Londres e, mágoa das mágoas, escolhe Miss Kilman (como todos os seus defeitos) como companheira.

A última das contendoras (não que Virginia não nos faça perceber outras, sentadas nos cantos da sala de Clarissa) é a velha Lady Bruton. É certo que as duas não se suportam, mas se respeitam. No fundo, Lady Bruton é, de alguma forma, o que Clarissa gostaria de ser. Uma grande dama, mas também uma mulher influente, capaz de conversar assuntos “de homens”, aconselhar-se com eles, tendo até a deferência do Primeiro Ministro. Lady Bruton não tolera Clarissa, e parece ser a única a não se deixar enganar pelas fachadas da outra, mesmo sem ter isso tão claro. De qualquer forma, a velha lady a teme.

Woolf, consertando vestidos no entre-guerras?

A uma historiadora ainda chamam atenção momentos como o que Clarissa (rica, burguesa e cheia de empregados) conserta, ela própria, um vestido já usado anteriormente para sua grande festa. Em tempos de consumismo desenfreado, como o nosso, a imagem causa um deslocamento no tempo. Se, por um lado, vemos uma educação feminina persistente mesmo nas altas classes, por outro lado, o pós-guerra, por tantos descrito como uma era propícia ao esbanjamento, se revela, neste mísero detalhe. O grande Império não passara impune pela Guerra Mundial que devastara a Europa.

Também marcou-me uma frase, dita a Elisabeth: “todas as profissões estão franqueadas às mulheres de sua geração.” A frase é uma novidade, impensável na geração anterior. Mas também é uma mentira e Virginia sabe disso. As mulheres podem formar-se, em 1925, no que quiserem, mas exercer uma profissão é apenas para aquelas que não escolhem (ou são empurradas para) o casamento, seja o de fachada, seja o por amor. Os casamentos superficiais sugam e murcham as mulheres. Os por amor acabam por destruir tudo o que tocam. É o que pensa Mrs. Dalloway, presa ao primeiro e eternamente fugindo do segundo. Talvez, olhando com atenção, se possa ver Virginia Woolf escondida atrás dela.

WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. Trad. Mario Quintana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

Nikelen Witter é escritora e historiadora.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora